As falas do homem bode pareciam vindas do outro lado do oceano.

Devo ter concordado em seguí-lo única e exclusivamente porque a agitação da mesa de Hermes não combinava com meu humor, especialmente a turba ensandecida de "Indefinidos" que jogavam a frustração de sua falta de reconhecimento paterno/materno nas travessuras dos filhos do Mensageiro do Olimpo. Não fazia parte de mim me misturar daquela forma, na verdade, não fosse o fato de minha mãe ter sacrificado tudo só pra me deixar na segurança daqueles chalés sem graça, eu já teria tudo a chance de escapar e voltar a minha vida de nômade sem fim.

Expirei profundamente, instintivamente colocando minha mão na espada, repousando dentro da bainha que me fora entregue assim que consegui ser autorizado a sair da enfermaria. Era como tocar minha mãe.

Lembro-me que a minha primeira atitude ao finalmente entender que nada daquilo fora um pesadelo, que minha mãe realmente tinha tido um trágico fim tentando proteger um inútil que só conseguira gemer de dor enquanto ela explodia a si mesma, eu joguei a espada na parede da enfermaria só para, no fim, me ver abraçado ao presente de despedida, encolhido feito uma criança, chorando lágrimas que jamais pensei saírem de mim.

Antes que as lembranças fossem me tragar, limpei a garganta e me dei conta de onde eu estava.



Estava tão perdido em meus devaneios que nem.me dei conta que havíamos nos afastado demais das áreas comuns, entrando pela floresta e parando numa espécie de monumento que por um segundo, imaginei estar dando o dedo do meio pro céu, mas era um punho fechado...Se me recordo bem do tour introdutório se tratava do Punho de Zeus, o maioral do Olimpo.

- ...mas eu acho que heróis não nascem da felicidade, não é? - Foi a frase que eu realmente ouvi antes de um relâmpago cruzar os céus, revelando o que parecia ser uma expressão de descontentamento sombrio.

Meus sentidos se alertaram e eu dei um passo para trás, apertando a mão que estava no punho da espada com firmeza, enquanto elaborava um plano de fuga, olhando aos arredores para saber minhas opções sem, contudo, alertar o sátiro.

Ao que me lembro das vezes que minha mãe comentará sobre a espécie, ela dizia que não eram de todo ruins, embora os do lado dela fossem muito mais patéticos. Podiam ser completos inúteis numa batalha, mas não eram nocivos a semideuses.

Seria aquele uma exceção à regra?

- ...Concordo... - Uma lição que aprendi durante meu tempo de fugas é que a melhor forma de escapar de um vilão, sequestrador, psicopata, monstros que querem te servir no jantar, era que fazê-los falar de si normalmente significava conseguir tempo. - ...Os seus irmãos não concordam com você? Pois deveriam! Veja Hércules por exemplo! - Eu não conhecia a lenda toda, mas certamente o cara mais famoso da Grécia devia ter alguma história triste da qual certamente o Sátiro se lembraria.

- Entendo... - Falei, concordando mais uma vez, dando outro passo disfarçado para traz, sentindo minha nuca se arrepiar com o perigo.

A proeza que o sátiro fizera com a lata de refrigerante me fez imaginar que sua boca seria uma espécie de metralhadora automática e eu provavelmente seria o alvo da apresentação.

Já estive em um stand de tiros uma vez, minha mãe estava sempre preocupada em me preparar para toda e qualquer situação e uma chance de me fazer testar uma arma de fogo era a oportunidade prefeita para me treinar. Lembro-me dela ter feito um truque estranho e o instrutor até a chamada de Capitã, mais tarde descobri que se tratava da dobra da Névoa, coisa que apenas semideuses realmente experientes eram capazes de executar.

A visão do que o sátiro podia fazer apenas mastigando uma lata e cuspindo me fez entender que minhas chances de fuga caso ele realmente quisesse me acertar tinham diminuído para 15%, que dependiam de que eu o distraisse mais eficientemente então me concentrei.

- Qual seu nome mesmo? - Perguntei, procurando uma árvore próxima que eu pudesse fazer de escudo contra aquele disparo repentino antes de fugir rapidamente. - O que você acha que um herói deveria passar para se tornar um? - Era mais uma das minha pífias tentativas de enrolá-lo, enquanto dava mais um passo para trás. Precisava mesmo sair dali.

— Argh!!!! — Gemi ao sentir a dor que irradiava de meu joelho direito. — Quer falar sobre abuso? Então que tal falarmos do tiro que tua boca metralhadora acabou de dar na minha perna SEM RAZÃO ALGUMA! — Esbravejei, grunhindo feito um animal por causa do ferimento em minha perna. Meu cérebro pensou rápido, precisava derrubá-lo imediatamente o que seria virtualmente impossível se eu não me recuperasse, por isso, trinquei os dentes e esperei sua aproximação, quando ele estivesse próximo o suficiente, usaria minha perna boa para impulsionar meu corpo contra o dele, colocando todo o meu peso no movimento, enquanto sacava a espada durante o ataque, mirando direto no pescoço para finalizá-lo rápido com um golpe penetrante.

Uma vez que ele já tinha feito o movimento para o ataque, não tinha porque eu ficar relutando em matá-lo, minha vida era muito mais importante que a dele.

Patético

Fazia sentido aquela palavra...Minha mãe morrera unicamente para fazer chegar até ali, nós havíamos cruzado com monstros a vida toda e sobrevivido, mas bastou eu abaixar a minha guarda um pouquinho por causa da sensação de segurança que havia conquistado para me meter numa situação que seria impossível me safar, especialmente porque minha heroína não estava mais nesse mundo.

A dor irradiava de vários lugares diferentes e tudo que eu conseguia pensar era que aquele seria meu fim...Talvez fosse isso que as parcas haviam pré-destinado para mim, mas eu me recusava a deixar a última lembrança da minha mãe para trás, de modo que, ignorando as dores, como último ato naquele injusto teatro, desejei segurar firmemente a minha espada, aceitando o destino que havia me levado aquilo...Um patético adeus para uma vida patética...

Do que adianta me perguntar do que são feito os heróis? Eu nunca quis ser um. Todo esse planejamento tático que meu pai havia feito era uma idiotice sem tamanho. Eu nem sabia quem ele era...

O céu tempestuoso refletido na lâmina da minha mãe me acalmou por um segundo. Adorava o cheiro de terra molhada que seguia o vento impetuoso, as gotículas d'água presas ao vidro da janela, a temperatura que caía e gelava até a alma, trazendo consigo a sensação de segurança momentânea, uma pequena pausa em nossas peregrinações. Lembro-me que poucas vezes havíamos sido atacados durante dias como aquele.

Meus dedos não conseguiam se fechar na falcata, na verdade nem conseguiam alcançá-la e isso era o que mais me frustrava de tudo aquilo. Àquela altura, eu queria ser capaz de me erguer e mandá-lo pelos ares, cortar sua cabeça imediatamente, fazer suas tripas saírem de sua barriga e queimá-las embebidas em gasolina...

— Você vai me pagar! — Foi o que consegui balbuciar, virando-me com raiva para o sátiro. Minha ira não estava sendo lá muito racional...Eu estava com raiva de não ser capaz de morrer com a espada de minha mãe comigo. Nem era por estar morrendo, era por ter feito todo aquele esforço para sobreviver só para, no fim, ser morto pela criatura mais patética da fauna mitológica.