Outras telas começaram a aparecer. Cenas tão deploráveis quanto as anteriores, algumas piores. Me perdi diante de tanto sofrimento. Era difícil ter de lidar com tudo aquilo. Quando descobri que era um semideus e que deuses eram reais eu enxergara um mundo diferente diante de mim. Dessa vez, ela me mostrava o mundo que sempre esteve presente ao meu redor e eu jamais havia valorizado e compreendido em sua essência. Observar e torcer para o melhor. Talvez passar tanto tempo lidando com monstros e os treinamentos do acampamento me fizeram pensar que eu poderia segurar o mundo com minhas mãos. Não podia. As pessoas que ela me mostrava não tinham habilidades especiais de algum deus, eram apenas humanos, como ela me dizia. Pensei alguns instantes, olhando para minhas mãos nuas. No fundo eu sabia que não era ser filho do Deus do Sono que me fazia especial. Ser meio-deus não era a parte mais importante em mim. Olhei para a menina.

- Sou um semideus. Ter poderes excepcionais é só metade do que eu sou. Até menos que isso. A maioria das dificuldades que passamos, como todos eles passam, não se resolve só chamando um raio ou usando magia. É a coragem e a vontade que fazem com que levantemos quando caímos e façamos melhor - Disse, voltando-me para as cenas mais uma vez - Acho que agora entendo por que ficar parado observando pode não ser o que eu pensava. Saber dessas qualidades e entender o seu poder me dá esperança que tudo dê certo para eles no final da história. Me deixa mais confortável. - Disse. - Mas... Por que está me mostrando isso? -

Fechei os punhos, concentrando-me na ideia anterior. Tinha de confiar neles e aguardar pelo melhor. Não era meu papel julgar os rapazes que pegaram aquela moça ou os que maltratavam o cão. Mais imagens apareceram, fazendo-me franzir os lábios. Não estava com sono ou vontade de dormir naquele momento, mas a vontade latente de sair e fazer alguma coisa era combatida pelos meus pensamentos. Pela primeira vez no túnel senti como se pudesse controlar esses meus impulsos e fazer a coisa certa. Em nenhum momento deixara de me preocupar com cada uma das figuras, do menor ou maior, do mais sangrento ao mais sujo. Minha mente disparava no sentido de dor, eu queria virar os olhos e não olhar mais para nenhum daqueles. Mas me forcei a continuar. Se era vontade que eu precisava demonstrar e força que eu precisava ter, eu iria atrás disso. Não precisava estar mergulhado nos sonhos para isso. Deixei as cenas me perturbarem sem que eu desse uma só palavra, como se eu enfrentasse a situação de cada uma delas. - Eu consigo -

Retribuí o sorriso da menina. Fiquei feliz que ela havia gostado do que eu havia dito. Talvez eu realmente estivesse me tornando uma pessoa melhor e mais forte com tudo aquilo. Quando ela retirou a adaga eu percebi as chamas que a percorriam de imediato, uma lâmina flamejante diferente do que eu já havia visto. Quando ela me falou para apunhalá-la meus ombros cairam. Encarei seus olhos, tentando processar aquilo. A única coisa que saiu da minha boca foi um confuso "Quê?". Cerrei os punhos e olhei para as cenas mais uma vez. Era esse o preço a ser pago? A vida de uma menina pela chance de ajudar todas as outras? Deixei entrar em mim toda a dor daqueles, fiz dos pesadelos deles o meu, tomei a dor deles como se fosse minha. Estendi a mão para a adaga e parei no meio do caminho.

- É uma vida pela chance de ajudar todas as outras. Mas....- falei, pegando o cabo da arma e tentando fazer como se estivesse me ajoelhando para ela, mesmo que estivéssemos flutuando "Sua existência vale tanto quanto a de cada um deles. Como pode uma jornada de salvação se iniciar com uma vida sendo tirada? Eu quero de verdade que haja outro jeito. Um que não implique nessa adaga ser manchada de sangue" Segurei a adaga. Largá-la seria falhar com todos os outros que poderiam ser ajudados daqui em diante. Era uma decisão difícil, talvez parte de mim sentia que poderia tomá-la. Mas se a matasse agora, sem nem mesmo procurar por uma outra alternativa, jamais conseguiria me perdoar.

Respirei fundo. Só um de nós sairia dali. Minha cabeça borbulhava de ideias e maneiras diferentes de dizer a ela que eu não queria fazer aquilo. Alternei olhares entre as cenas e ela, tentando chegar em um consenso. Até que fechei meus olhos. Queria pegar minha flauta e tocar alguma melodia para me acalmar e fazer com que eu me concentrasse, mas não havia tempo para isso. Todo o percurso até aqui, tudo que ela tentara me fazer era me tornar forte o suficiente para tomar decisões. Me alertara de que algumas vezes tínhamos que abdicar de certas coisas. Apontei a lâmina para ela, com uma lágrima no rosto. Parte de mim estava tentada a devolver a ela e só tentar sair dali. Parte de mim queria retornar ao acampamento e me juntar aos meus irmãos. Mas eu não podia mais. Depois de tudo que vira, eu não podia mais retornar e viver a mesma vida que tinha antigamente. Estendi a mão na sua direção e girei o cabo da adaga, apontando-a para meu peito, segurando-a forte, como se a qualquer instante fosse usá-la contra mim mesmo.

- Não importa o quanto eu pense, sempre vai soar errado atingir alguém tão pura como você. Mas a cada segundo em que estou indeciso, só há resistência minha e nunca sua. Fiquei tentado a fazer isso comigo e por isso eu entendo o porquê de você não ver problema em fazer isso com você. Não é por mim, nem por você, mas por todos eles. - Girei a arma novamente e toquei os ombros da garota. Sem falar mais nada, aproximei a adaga do seu peito, tentando ser o mais rápido possível para que ela não sinta dor.