I


Em algum lugar no meio da noite, alguém chorava.


II

Era um pesadelo, obviamente. Não sabia como tinha começado, nem se ele sequer acabaria. Seus pés esmagavam o cascalho e ela corria desesperadamente pelo caminho arborizado. Os pulmões estavam prestes a explodir, e seu coração tamborilava como em um musical aterrorizante enquanto - hausto após hausto - ela enfiava ar frio por sua garganta. Seus olhos se fixavam na casa à sua frente, uma única luz iluminando um quarto alto, atraindo-a como uma mariposa. A cerrada floresta que a cercava fazia ecoar suas arfadas enquanto criaturas da noite ululavam e grasnavam. Da estrada atrás de si, ela ouviu algo gritar - em seu coração esperava ser um animalzinho vitimado por um predador - mas não parava de correr, como se legiões do inferno lutassem para agarrar seus calcanhares, e não olhou um momento sequer para trás até chegar à entrada da velha mansão.


À luz pálida da lua, as colunas brancas pareciam esqueléticas, como os ossos de um animal gigante. Ela se agarrou ao batente de madeira, puxando haustos de ar, olhando para trás no longo caminho, como se esperasse por alguma coisa e então, bateu na porta - timidamente, de início, depois mais forte - e as batidas ecoaram pela grande casa. O eco que voltava, fazia-a acreditar, que lá de longe vinham batidas em outra porta, abafadas e mortas.


É sempre problemático acreditar em qualquer coisa quando se está em um pesadelo.


A luz bruxuleante no quarto mais alto diminuiu e sumiu, reaparecendo em janelas cada vez mais baixas até mergulhar nas profundezas da casa. Ela tentou recuperar o fôlego. O tempo parecia deitar, e esperar algumas horas antes de voltar a passar, até que passos foram ouvidos do outro lado da porta, e a garota vislumbrou uma nesga de luz através de uma fenda no batente mal encaixado.


- Olá - A voz, era seca como ossos velhos, uma voz ressequida, que recendia a pergaminhos rachados e musgos de cemitério. - Quem chama? - disse - Quem está batendo? Quem está chamando logo nesta noite?


Por um momento, não soube responder. Demorou alguns segundos até que se lembrasse quem era. Mas não sabia porquê corria. Só que fugia de algo. Algo perigoso.

A porta foi aberta - apenas uma fresta - para que quem estivesse lá dentro pudesse ver à semideusa de fora. Ela também viu quem a encarava de dentro da casa. Era uma mulher tão velha que a pele ressequida dava a impressão de ser feita de papel, com olhos tão antigos que pareciam ter visto a verdade antes mesmo de ela ser inventada.


- E o que faz aqui, então, nesta casa, logo nesta noite? - Ela não sabia.


Não só isso, precisava de um esforço mental muito grande para simplesmente se lembrar do seu nome. A princípio o culpado parecia ser o pavor implacável, fruto da fuga, daquilo que a perseguia desde o início do pesadelo. Mas algo sussurrava em seu âmago. Lhe dizendo que a razão de tanta turvez era aquele lugar.

- Ora... Você... - As feições daquela velha se contorceram no que a garota poderia jurar ser surpresa. - Você não é daqui... entendo. - A porta se fechou e a indefinida ouviu o estrondo de dois ferrôlhos gêmeos sendo abertos, e Emily se sentiu levemente aliviada. - Entre, entre! Bem vinda a esta casa sem nome, logo nesta noite...


A mulher segurava uma vela de sebo; sua luz bruxuleante iluminava seu rosto por baixo, dando-lhe um ar irreal e fantasmagórico. Os dedos pálidos fecharam a porta por trás da garota quando ela entrou, e uma sensação de completo abandono dominou aquele lugar.


Emily tentou se forçar a lembrar como tinha ido parar ali. A única explicação lógica era: aquilo ser um sonho ruim.


Mas seus instintos não diziam o mesmo.

A vela era a única iluminação daquele lugar. A indefinida nunca teve muitas dificuldades no escuro, mas ali a ausência de luz parecia ser também a não existência. Fez-se brevemente capaz de temer o escuro, não o temor descrito por Stephen King - da criatura que se esconde nas sombras - não... era algo mais cru, como um desenho com medo da borracha, ou uma história com medo do esquecimento.


- Eu tive muitos nomes, no passado... mas perdi todos eles, logo nesta noite.


Ela levou a indefinida até um sofá, era velho e fedido. Sentaram-se de frente, com uma mesa de madeira aos pedaços entre as duas. Assentou a vela sobre o móvel, ajeitou-se no estofamento e respirou fundo. Seus pulmões assoviavam, seus ossos estalavam, ela parecia estar morrendo, mas seu rosto não apresentava expressão de medo ou preocupação, na verdade os leitosos e indiferentes olhos abraçavam Emily e a afogavam num vazio de sentimentos e sensações.


Por mais de uma vez, a garota teve que se forçar a lembrar como foi parar dentro daquela casa, quem era, e que aquilo era só um pesadelo.


- E você? De onde vem? Como veio parar aqui, logo nesta noite?

A idosa suspirou, e o lugar pareceu suspirar com ela. A chama da vela tremeu com o ar que escapava de suas narinas velhas, e a escuridão pareceu vencer a pequena luz por um breve instante, até que o fogo parou de dançar e tornou a brilhar.


- Vivos não costumam passar por aqui. - ela pareceu se lembrar da pergunta, sobre o que a noite têm de especial. - Essa é a noite sem fim, o fechar de olhos, o suspiro final. É o bosque entre a vida e a morte, entre o que existe, e o que deixou de existir. - Deu a Emily um olhar frio. - Como veio parar aqui?