Expirei o que devia ser o décimo quinto suspiro daquele fim de tarde. As nuvens pesadas e cinzentas se arrastavam no céu com a mesma melancolia que meu olhar – tão cinza quanto - se arrastava pelo acampamento. As pessoas andavam vagarosamente de um lado a outro. Faziam coisas aqui e ali, se falavam, comiam, treinavam, cochilavam em uma cama de feno. Demorei mais meus olhos sob os campos de treino de esgrima, onde alguns campistas se enfrentavam. Kadie, uma velha amiga, e um colega qualquer da primeira coorte. Ambos se enfrentavam em aparente igualdade, mas os movimentos de Kadie me pareciam diferentes. Mais lentos, menos evasivos e agressivos do que eu estava acostumado a ver. Ela recuou diante de uma finta e bloqueou com dificuldade um corte contra seu tornozelo. O seu oponente viu ali uma oportunidade e avançou com tudo contra ela, estocando contra seu peito com a espada de ouro, e por um momento eu achei que ele fosse acertá-la. Mas ali eu vi um sorriso no rosto da garota, que girou para o lado, desenvolta e ágil, e o atingiu com força com um golpe amplo e forte nos joelhos, mandando-o girando pro chão.
Entristeci-me mais ainda naquele dia ao perceber que eu teria caído como um pato, assim como o garoto. Suspirei pela décima sexta vez. Fintas. Manipulação. Coisas das quais eu pouco sabia ou entendia. Meu combate sempre fora direto, tudo de mim contra tudo do meu oponente. Mas “tudo” englobava coisas demais, eu percebia a cada dia. Como poderia um oponente mais fraco vencer um mais forte? Como poderia eu tornar-me mais habilidoso além da espada? Seria ela mesmo tudo o que eu precisava? A cada dia, enquanto eu percebia que os inimigos que eu enfrentava se tornavam mais fortes, e que meu crescimento parecia cada vez menor, eu me via frustrado comigo e meu estado atual. Para completar minha desgraça, eu já não era sequer digno da liderança do grupo que eu mesmo havia visto nascer e crescer como um broto de lírio. Encarei o horizonte, perdido nas nuvens cinzas carregadas de tristeza e já estava inspirando ar para o décimo sétimo suspiro quando a voz me surpreendeu;
-- Por que olha pro nada, filho do gelo?
Virei-me lentamente, meus reflexos retardados pela minha letargia, surpreso pela presença repentina. Eu nunca tinha visto aquela guria antes. Depois de tantas surpresas, nós deixamos de pirar com certas coisas. Não senti hostilidade vindo daquele pequeno ser, mas sim uma neutralidade que me manteve ali, ainda sentado na pedra onde estava de pernas cruzadas observando o dia passar sob a sombra de uma árvore e sobre o frio de uma rocha.
- Mamãe falou de você, o filho que se congelou no tempo, que irônico. – Surpreendeu-me ela. Aquilo sim me despertou de meu estupor e me fez inspirar profundamente, preparando-me para falar, quando ela desapareceu da minha frente.
Se ela chamava Quione de mamãe... ela era uma meio-irmã. Seria ela uma semideusa ou uma boréada? Por desaparecer no ar, eu acreditava que fosse a segunda opção. Um dos filhos de minha mãe com outro espírito da natureza... Mais poderoso, mais temperamentais, mais perigosos... Mas tanto faz. Tanto faz, pensei.
- Mamãe veio dizer que seu coração está quente com duvidas, mas seu coração devia ser gelado, como a sua pele alva, o que acontece? semideus...
Olho ao redor em busca da pequenina enquanto aproveito para estalar o pescoço e me levanto, alongando-me preguiçosamente.
- Mamãe está certa – falo, no meu tom baixo e calmo de sempre – ao menos em parte. Há duvida em meu coração. Mas também há certezas. Eu só... Não sei. Não sei o que falta em mim. Só sei que há algo que ainda não tenho... Algo que me falta para ser forte. Para ser um, samurai e sua espada. Para fazer o que é certo. Para saber o que sou e qual minha função neste mundo. Eu não sei.... sabe? – vacilo levemente no fim, mais uma vez incerto se estava trilhando o caminho certo, tanto em minha vida quanto em minhas palavras.
De alguma forma, eu teria de descobrir o que me faltava e como conquistar isso. De alguma forma. Nem que eu tivesse de cruzar todo o mundo caminhando para... É. Enquanto este pensamento louco me cruza a mente, percebi que talvez não fosse uma má ideia viajar em busca de conhecimento. De sabedoria e habilidade.... De experiência e visão de mundo. Talvez não fosse uma má ideia...