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Os Gêmeos do Sol  Empty Os Gêmeos do Sol

por Aron Tinuviel 12/11/16, 06:34 pm

Aron Tinuviel

Aron Tinuviel
Filho(a) de Apolo
Filho(a) de Apolo
Nome da narração: Os Gêmeos do Sol
Objetivo da narração: Apresentar o personagem e sua trama.
Quantidade de desafios: 1 semi-desafio.
Quantidade de monstros: 1 muito debilitado.
Espécie dos monstros: Lobisomen.

Não me lembro quantas vezes respirei antes da primeira nota. Mamãe sempre dizia que eu costumava apressar-me para começar a tocar e, como minha respiração não estava de acordo com a música, geralmente isso fazia com que eu perdesse o tempo durante a execução. Ainda que quase imperceptivelmente para leigos, especialistas podiam notar com muita facilidade esse erro fatal para um músico.

"Yerushalaym Shel Zahav", uma canção que guardava uma tristeza profunda. A história da canção fora o que sempre fascinara minha mãe. Ela fora criada diante de uma cidade devastada, numa reconstrução melancólica e nostálgica, com a dor das lembranças de sua glória, mas com uma pequena faísca de esperança. E era essa faísca que fazia minha mãe chorar, ela me fazia tocá-la com frequência e sempre terminava chorando quando a música entrava em seu ápice. Eu sentia falta de acompanhamento de uma orquestra completa e um coral. Ah! Um coral tornaria o arranjo divino, mas não podia me dar esse luxo, não no exame bimestral.

Prossegui com a apresentação, tive de adicionar alguma notas no arranjo para não ficar um vago onde outros instrumentos complementariam. O piano me obedecia sem qualquer problema, o som do instrumento era incrível, um lindo Bosendörfer negro de cauda, tínhamos um desse em casa, mamãe gostava particularmente dessa marca.

Sabe o que é melhor no piano? É um instrumento que te permite extravasar toda a emoção de seu peito através de seus dedos. Quer chocar alguém? Adicione acordes dissonantes! Quer emocionar? Use acordes menores com leves toque nas teclas! Quer fazer o coração da pessoa pular? Use as oitavas mais baixas e veja as pessoas assustando-se aos poucos. Mamãe sempre dizia que a música era a mais poderosa das armas, eu sempre concordei.

Antes da última nota da música quase podia sentir os braços dela envolvendo-me com carinho. Como sentia falta desse toque. Sua cabeleira negra caindo como uma cascata pelos meus ombros depositando um beijo em minha bochecha, enquanto eu sentia suas salgadas lágrimas caindo em minhas mãos.

Ao final da apresentação levantei-me sendo aplaudido pelos quatro avaliadores, embora pudesse notar a expressão rabugenta de meu fã número 1: Heliot Underwood.

Não vou mentir, Heliot me irritava. Era o professor mais rigoroso que eu já vira. Possuía uma barba esquisita, cerrada e mal feita, terminando em uma barbicha ridícula que só completava sua cara de bode. Bochechas rechonchudas e coradas eternamente, como se maquiadas por blush permanente, que em nada ajudavam em seu tom de pele cobreado. Os cabelos encaracolados estavam meio cobertos por uma touca com as cores do Bob Marley. Sua barriga protuberante o obrigava a ficar um pouco afastado da mesa, mas ele me olhava como se dissesse: "Eu poderia contar pelo menos 3 arpejos que saíram muito errados ali, garoto!". Eu talvez estivesse disposto a concordar com ele, só talvez...

— Que performance magnífica, Sr, Tinuviel... — Comemorava a reitora, com os olhos lacrimejantes, emocionada, retirando-me de minha batalha mental com meu professor de interpretação. — ...Acácia teria ficado orgulhosa. — Disse entre umas palmilha e outras.

Acho que devo ter feito uma expressão não muito amigável, já que até Heliot lançou-me um olhar solidário. Agradeci, sabendo que havia passado no exame do terceiro bimestre. Mesmo que Heliot tentasse acabar com minha média, eu tinha executado uma boa apresentação.

O prédio das audições ficava em um pavilhão separado dos demais edifícios do Conservatório Saint Agnes, em que minha mãe tinha estudado quando tinha a mesma idade que a minha. O campus era gigante, com prédios que mesmo eu ainda não tinha conhecimento, com muitos filhos de intérpretes famosos espalhadas pelas centenas de cursos diferentes, com especialidades que envolviam instrumentos do mundo inteiro.. Os nomes que passaram por aqueles salões iam desde gênios da música clássica, até cantores muito populares. Um ótimo lugar para me internar, pensara Suzaku, o agente de minha falecida mãe.

Estava fazendo um ano desde o grande acidente. Um ano que o avião de Acácia Tinuviel caíra no meio do Atlântico enquanto ela rumava para uma apresentação. Mal funcionamento de algum dos aparelhos, engraçado já nem me lembrar qual era o nome da maquina responsável pela morte dela. Tão mais fácil esquecer quando ele estava no fundo do mar, provavelmente sendo morada para os peixes. Não conseguiram resgatar o corpo, comido por tubarões. Um triste fim para pianista tão famosa e tão jovem, disseram os jornais. Eu não sentia falta da pianista, sentia falta da minha mãe.

Para meu azar eu não tinha parentes que pudessem me criar, portanto fiquei sob a tutela do agente de minha mãe. Foram meses difíceis, até que ele veio com a ideia de me colocar em um internato para que eu estudasse música, dois problemas resolvidos. Não teria que cuidar de um marmanjo de 17 anos e poderia usufruir dos dólares que minha mãe havia deixado para meu tutor legal cuidar de mim até que eu fizesse 21 anos. Perfeito!

Andei muito até chegar no refeitório, já era hora de por alguma coisa no estômago antes que eu desmaiasse e isso seria indigno demais. Quando entrei, vi os rostos virando-se para acompanhar meus movimentos, isso muito me irritava. Eu sou bonito, sei disso, mas não precisam babar por mim toda vez que eu passo. Não importava o sexo, idade ou nicho social, minha presença parecia atrair a todos como se eu tivesse um campo de gravidade próprio. Não bastasse isso, eu parecia ter uma influência incomum na fala, se eu abrisse a boca para dar algum argumento, não importa quanto a pessoa pensasse, ele sempre parecia irrefutável, mas...pensando bem...não era com todos, o maldito Heliot nunca aceitava meus argumentos. Nunca!

— Como foi a audição? — Perguntou-me Cristie ao se sentar, com sua bandeja cheia de guloseimas não muito saudáveis.

Conheci Cristie Hunter no ano passado, quando ingressei no internato. Éramos da turma de calouros daquele ano e o trote da turma de música era uma audição semi-nu com todos os veteranos assistindo. Cristie participava de um time de handball antes de entrar para o internato, então seu corpo era naturalmente atlético, causando verdadeira comoção entre os mais velhos.

Veja bem...músicos e musicistas não tem muito tempo para dedicar-se a treinamentos, então pense qual seria a reação de um bando de nerds gordos demais ou magros demais, que pouco conseguiam um relacionamento de média duração, quando viram uma mulher de um metro e sessenta e cinco centímetros, com curvas de dar inveja em muitas modelos, entrar de lingerie vinho com sua pele bronzeada. Exatamente! Ninguém prestou atenção em como seu violino soava, mas eu notei o talento dela. A emoção com que tocava era surreal, minha mãe adoraria ouví-la. Quando acabaram as audições eu a procurei para dar minha opinião a respeito de sua performance, nunca mais desgrudamos.

Na verdade Cristie era muito parecida comigo, como se fosse uma versão feminina de mim mesmo, e isso assustava os demais! Muito! Por vezes perguntaram se éramos parentes, é claro que negávamos no início, mas depois começamos a achar engraçado e passamos a fingir ser gêmeos. Era hilário a cara das pessoas quando completávamos as frases um do outro.

Estávamos na mesa mais afastada do refeitório olhando os populares no centro fazendo uma algazarra desnecessária. Algumas pessoas do time de basquete me olhavam vez ou outra, mas só me juntaria a eles no final de semana. Confesso que evitava o máximo de contato possível com a maior parte do campus, mas fazia parte de um clube aqui e ali, apenas para manter-me distraído quando as partituras começavam a por-me louco.

— Toquei "Jerusalém de Ouro".— Disse e preparei-me para mais um olhar solidário, mas não veio. Cristie apenas começou a comer despreocupadamente.

— Não acho que foi sua melhor escolha... — Ela respondeu entre uma colherada e outra, e eu sabia que referia-se ao nível de dificuldade.

Conversamos sobre animosidades enquanto ela me atualizava de tudo que acontecera no campus desde nosso último encontro, que fora umas duas horas antes. Fiquei impressionado com a quantidade de acontecimentos, embora eu pudesse viver sem saber de nenhum deles.

Eram coisas banais, Cristie se interessava por elas, mas eu poderia morrer sem saber que Suzan havia dado um fora em Castro ou que Maggie e Sam haviam sido flagrados fazendo sexo atrás das arquibancadas — Essa particularmente era uma imagem da qual eu não necessitava, imagine dois mastodontes peludos brigando por hegemonia e terá algo bem parecido com a situação.

Embora não me interessasse, Cristie foi despejando as informações uma em cima da outra como sempre fazia, eu meio que ouvia, mas não prestava tanta atenção, hora ou outra fazia um comentário só para não deixá-la falando sozinha, mesmo que fosse desnecessário, Cristie era tagarela por natureza quando estava nervosa.

— Agora vamos ao assunto que realmente interessa... — Interrompi no meio de um relato muito interessante sobre os flautistas da orquestra realizando uma orgia, o que já era informação demais para mim. — ...O que houve? — Perguntei e ela fez cara de que não estava entendo, mas eu apertei meu olhos e ela cedeu.

— Minha tia quer me transferir, acha que não estou me saindo bem... — Disse e a comida pareceu menos interessante para ela, o que nunca acontecia.

Queria oferecer ajuda, mas música não é algo que possa ser ensinado em sua totalidade. Claro que teoria podia ser decorada, partituras podiam ser lidas e interpretadas literalmente, mas o que realmente torna um músico bom é seu ouvido, sua musicalidade. Não é algo que pode ser ensinado, trata-se da identidade do artista, nada mais. Eu sabia que as notas de Cristie vinham caindo com o tempo, mas o problema estava em tentar encaixá-la no estilo conservador de alguns professores que queriam uma execução perfeita e pouco individual.

— Não desista! Se puder ajudar, pode contar comigo. — E abri o melhor sorriso que pude.

Cristie pousou seu olhar em mim por um tempo maior, como se estivesse em transe olhando para uma lembrança perdida. Às vezes eu causava esse impacto nas pessoas, elas ficavam encantadas com esse sorriso, mesmo que eu não o desse sempre, quase todos ficavam reservados para ocasiões especiais.

O resto da conversa foi mais animado e eu permiti que ela continuasse com suas fofocas habituais, desviando a atenção de seu próprio problema, para concentrar-se nos das milhares de pessoas do campus, era uma observadora muito atenta.

Após o almoço, começavam as aulas complementares e eu passaria a tarde inteira esperando pelas seis horas, quando iniciavam-se as atividades extra-curriculares. Cristie ia para o clube de jornalismo, era uma das redatoras mais famosas do campus, sua coluna era a mais lida e comentada nos grupinhos de Saint Agnes e seu blog era um record de acessos. Se Cristie não desse certo como musicista, eu mesmo investiria em sua carreira como apresentadora de programas de fofoca.

Eu era membro do clube de arco e flecha, algo que fazia nenhum sentido, mas eu era bom com um arco. Não me peça uma explicação coesas de como cheguei a esse hobby, como as outras coisas estranhas da minha vida, era puro extinto.

O prédio do clube era enorme, a maior parte de seu território era da área de alvos que possuía 170 metros de comprimento. Os fundadores do clube não eram pessoas normais. Durante seus primeiros anos o clube trouxe troféus para o internato, mas atualmente não tínhamos nem uma estrela capaz de vencer se quer as regionais. Pelo menos não até eu entrar no clube.

Eu sou bom com o arco. Bom mesmo! Até fui indicado pelo clube para participar das competições, mas recusei. Eu precisava me concentrar na minha carreira como músico, gosto da arquearia, mas musica exige comprometimento total. Recentemente os veteranos estavam preocupados que o clube fosse fechado pelo internato e estavam muito perto de me convencer a entrar na próxima competição, eu gostava de ficar ali, principalmente porque podia alvejar minhas preocupações com muitas, muitas flechas!

Em pouco tempo já me encontrava na área de alvos. Era um lugar cercado por um muro com 6 metros de altura, bonecos de palha estavam dispostos de maneiras diferentes, com distâncias que iam de 10 até 120 metros, esses últimos eu tinha que subir numa plataforma para acertar. Também tinham os alvos móveis, um disparador de frisbies que fora programado pelo clube de desenvolvimento de software do campus com padrões irregulares. Eu tinha acesso livre a área de treinamento então ficava ali quanto tempo eu podia. Naquela noite era só eu e os bonecos, para a infelicidades dele.

Enquanto eu disparava as flechas eu me permiti pensar no sonho estranho que tivera.

Eu estava em uma colina ao lado de um grande pinheiro com uma espécie de tecido reluzente de ouro pendendo de um dos galhos, suas raízes de cobre entrelaçavam-se pela base do tronco não dando para discernir sua origem. Quando ouvi os sibilos imediatamente saltei para traz, percebendo que não eram raízes, mas serpentes.

Inúmeras serpentes de cobre se enroscavam-se no tronco do pinheiro, sibilando baixo, todas dormindo um pesado sono. Ainda tinha um corpo que eu não quis identificar, mas as escamas do que parecia ser um réptil gigante era de cobre, no mesmo tom das serpentes e eu não queria saber se pertenciam ao mesmo corpo, isso queimaria meus neurônios.

À minha frente, eu podia ver uma espécie de parede translúcida que subia até onde minhas vistas se perdiam. Fui impelido a atravessar a barreira, eu sabia que podia. O que encontrei ao atravessar o véu foi um vale primaveral com campos de morango, o oceano cinzento ao norte e, em seu meio, um agrupamento de chalés que formavam a letra ômega grega. Uma voz ecoou pelo vale dizendo que eu estava enfim em casa. Acordei em seguida.

Eu não conhecia aquele lugar, mas certamente a sensação que eu tinha toda vez que me lembrava dele era de lar. Nele eu me sentia protegido, acolhido, como se toda minha existência pudesse ser explicada naquele lugar. Eu tinha sonhos estranhos, alguns eram pesadelos terríveis em que eu fugia de monstros, outros eram de lugares da qual nem tinha ouvido falar, alguns desses eram tão fantásticos que sempre tive dificuldade de, se quer entender, mas todos esses sonhos pareciam reais, como se a realidade que vivo fosse uma mentira em que eu estivesse preso a vida toda e só em meus sonhos eu vivesse em plenitude. Eu não contaria isso para ninguém, nem mesmo para Cristie, na minha concepção eu já era estranho o suficiente.

Minha mente vagava sem rumo pelos meus problemas, hora ou outra eu me pegava imaginando que um dos bonecos, que eu acertava com tanto afinco, eram um desses monstros que me perseguiam. Eu não precisava me preocupar com a quantidade de flechas, haviam muitas aljavas dispostas na área de tiro. Em dado momento, como sempre acontecia, minha mente chegou a uma questão delicada para mim: Meu pai.

Minha mãe morrera há um ano, mas meu pai desaparecera há bem mais tempo. Sempre que minha mãe falava dele, era como se fosse um episódio louco e divertido de sua vida, uma aventura intensa e prazeirosa, mas totalmente efêmera. Por algum motivo ela sempre me comparava a ele, dizendo que éramos muito parecidos. Eu não gostava disso.

Apolo era um guitarrista que entrara de penetra numa das festas promocionais organizadas por Suzaku, dançou uma valsa com a dama da noite e apareceu no dia seguinte com uma Kawasaki na frente da casa da minha mãe. Meus avós tiveram um piripaque, mas bastou um sorriso de Apolo para convencê-los de que era um bom rapaz, mesmo vestindo uma jaqueta e calça de couro, coturnos e uma orelha adornada de piercings. Mamãe o descrevia sempre como um espírito livre e foi por isso que quando eu nasci, ele teve de partir. Ficar preso a uma família? Não era algo que combinava com meu pai, portanto num belo dia ele desapareceu, deixando Suzaku com um dor de cabeça tremenda controlando os tabloides o máximo que pôde, acho que a aversão por mim começou por aí.

Quando minha mãe morreu eu achei que ele me procuraria, tentaria reparar 15 anos de irresponsabilidade. Eu me negaria e nós brigaríamos! Eu enfim saberia seus verdadeiros motivos de ir embora, algo sobre me proteger de uma organização musical secreta. Eu descobriria que ele sempre esteve me protegendo das sombras, nós faríamos as pazes e teríamos um final feliz. Só que não! Acho que foi mais ou menos nessa idade que comecei a ficar amargo sobre sonhos e contos de fada.

Eu fiquei tempo demais no clube, incrivelmente eu havia feito um estrago nos alvos. Frisbies em pedaços se espalhavam pelos bonecos de palha alvejados de muitas maneiras diferentes, admito que em todos os alvos que abati minha mente projetava a imagem que eu tinha do meu pai, tenho a impressão que se Apolo aparecesse na minha frente ele iria virar um ouriço do mar de tantas flechas que eu empalaria nele.

A lua já estava alta nos céu e as lâmpadas noturnas estavam acesas, iluminando o campo  e lançando sombras agourentas por toda a parte. Eu nem havia percebido o cair da noite até aquele momento. Permiti-me pegar uma última flecha, estava na plataforma para tiros longos, quando notei algo sobre o muro.

Há uns 160 metros de minha posição uma figura negra se erguia, os olhos vermelhos fitando-me. A coisa uivou para a noite como um lobo e saltou, um salto de um muro de 6 metros e ele não se quebrou todo, o que me apavorou e me fez descer as escadas imediatamente, minha mente gritando para que eu corresse.

A figura caminhou sobre quatro patas por entre os bonecos e quando estava a 50 metros eu pude discernir seus traços. Era um lobo negro do tamanho de um cavalo, de sua boca escorria uma saliva tipicamente canina, os olhos perturbadoramente inteligentes, os pelos enriçados fizeram minha alma gelar imediatamente. A essa altura minhas pernas tremiam e eu tinha meu arco tencionado, a flecha apontando para a cabeça da criatura. Ele uivou e eu disparei a flecha que cravou-se no crânio do lobo, eu esperei que morresse, nenhum ser vivo sobreviveria a uma flechada na cabeça, mas aparentemente as leis da natureza não se aplicavam a ele.

Fiz a coisa mais inteligente que pude: Corri. Disparei pelo prédio do clube sabendo que ninguém estaria lá, ninguém me ajudaria. O lobo era rápido e eu jamais poderia com sua velocidade canina, mas eu felizmente conhecia melhor o prédio. Então disparei pelos corredores agilmente agradecendo mentalmente por ter dedicado todos os meus finais de semana às partidas amistosas de basquete, do contrário eu teria morrida umas cinco vezes.

Desci as escadas do prédio e estava com tanta pressa que demorei a notar a figura aos pés da escada. Um capuz cobria sua face, mas parecia humana. Estava com um arco prata apontando na minha direção, eu quis gritar, mas estava concentrado demais em fugir para fazer qualquer outra coisa, mas houve uma impressão, um pressentimento, um instinto, chame do que quiser, alguma coisa me dizia que a figura encapuzada não estava mirando em mim.

Quando ouvi as portas do clube se arrebentando eu apenas me abaixei e ouvi o zumbido da flecha prateada que cortou a noite fria e cravou-se no crânio do lobo. Eu ia iniciar uma nova fulga, mas fui coberto por pó de ouro, o lobo se fora.

Uma BMW conversível parou atrás da figura, dirigida por Heliot Underwood, mandando-me entrar tão desesperadamente que pensei haver mais daquelas coisas perseguindo-nos, foi incentivo suficiente. Pulei no banco de trás do carro, a figura entrou logo após e o carro arrancou pelas avenidas do campus em direção a saída.

— Que coisa era aquela? — Foi a primeira coisa que consegui dizer depois de recuperar o fôlego.

— Um lobo! — Respondeu simplesmente. A garota abaixou o capuz, revelando sua identidade.

Era Cristie, minha melhor amiga. Cristie estava com um sorriso travesso nos lábios, como se tivesse a maior das fofocas do campus para me contar, e eu sinceramente não fiquei nenhum pouco empolgado em saber do que se tratava.

— Oi pra você também, garoto! — Disse um Heliot sem gorro ao volante. Seja lá o que tivesse batido em sua cabeça, fora bem forte. Havia dois galos muito inchados, pareciam chifres. Ai Meu Deus! Eram chifres!

— Ah! — Gritei tão indgnamente que Cristie caiu na gargalhada. — Tem chifres na sua cabeça! - Heliot pareceu ofendido. - Porque tem chifres na cabeça dele? E porque você sabe usar um arco?

O mundo parecia ter virado de cabeça para baixo, mas Cristie me pediu calma. Demorou, mas eu deixei que ela falasse. Segundo ela, e eu não acreditava, os deuses gregos existiam, e continuavam com suas manias de procriar com os humanos. Eu e ela éramos filhos de deuses e Heliot era um bode — sátiro — que protegia esses filhos de deuses. O trabalho dele era procurar por esses filhos, protegê-los e guiá-los para um tal de Acampamento Meio-Sangue, onde as proles dos deuses eram treinados e preparados para se proteger contra monstros, como o lobo que ela acabara de matar.

- Eu sou filho de... - O nome de meu pai pesava em sua mente. Não podiam ser as mesmas pessoas. Não podia ser o mesmo Apolo.

- Nós somos... - Cristie fez aquela cara de tenho o maior babado do mundo para você - ...Apolo! - Ela disse e como se para confirmar uma luz brilhou em pleno ar iluminando o carro. Pelo retrovisor eu vi o holograma de uma harpa dourada brilhando acima de minha cabeça, mais tarde saberia que aquele era o símbolo de meu pai.

- Tem mais... - E dessa vez sua expressão misturava-se em ansiedade e preocupação. - Nós somos irmãos... - Ela disse, mas depois resolveu corrigir-se. - ...Não só por parte de pai, nós somos gêmeos!

Mais um pouco e eu voaria pelo parabrisa. Heliot havia freado o carro tão abruptamente que mesmo ele bateu a cabeça no volante, adicionando mais um galo a seus chifres. Ele virou para trás esfregando o novo adereço olhando de mim para Cristie indignado. Minha expressão era de choque total. Aquilo só podia ser uma brincadeira de muito mal gosto. Eu juro que fiquei olhando ao redor imaginando onde estavam as câmeras.

- Gêmeos? De Apolo? - Heliot parecia assombrado pelas possibilidades do futuro. - Isso explica aquela quantidade grotesca de monstros... - Virou-se para a estrada e acelerou o carro em altíssima velocidade. Aparentemente a informação fizera com que sua pressa aumentasse.

- Isso é impossível! - Eu consegui dizer.

- Impossível? É bem perto disso na verdade, mas não chega a ser. - Heliot disse antes de fazer uma curva fechada demais para velocidade que estávamos. Eu fui jogado no colo de minha irmã.

— Mamãe não sabia. — Talvez realmente fossemos gêmeos, pois essa fora a primeira questão que pairou em minha mente. — ...Gêmeos semideuses são raros... — E o tom que ela usou me fez pensar que ser raro não era algo bom. — Era perigoso nos mantermos juntos, então, quando nascemos, Apolo embaralhou a mente da equipe médica e levou-me para a nossa tia, Ártemis. — Ótimo, mais uma para a conta de meu pai divino idiota, nem a própria filha criou. — Cresci entre as caçadoras enquanto você crescia com a mamãe. — Pela primeira vez pensei nas perguntas que Cristie fazia a respeito da minha mãe. Eu sempre achei ser curiosidade pela grande musicista. Me arrependi por não ter descrito melhor a nossa mãe.

Eu fiquei olhando para os olhos castanhos de minha irmã. Não era difícil notar a semelhança entre nós dois, mas só agora eu pensei em todas elas.

— Você sabia desde o... — Um bolor se formou em minha garganta e eu estava com dificuldades de terminar minhas frases.

— ...Início? — Completou ela. — Não desde o início, quer dizer eu era um bebê. Mas sim, eu cresci ciente de nós. Tia Ártemis não gosta de mentiras então ela me contou tudo quando estava na idade para compreender. — Algo em sua expressão me deu a impressão que não tinha idade para compreender. — Fui criada pelas Caçadoras. — E me explicou o que significava ser criada por um monte de meninas de doze anos que eram duronas o suficiente para arrebentar um bar inteiro de motoqueiros selvagens. — Quando a mamãe morreu eu sabia que você estava sozinho, então pedi para Tia Ártemis me liberar da caçada. Ela me deu três anos. — E eu vi em sua face o quanto foi difícil para ela todo esse tempo manter segredo.

Abracei minha irmã com força e intensidade o suficiente para recuperar todos os anos de abraços perdidos. Acho que choramos de felicidade, mas jamais admitiria isso.

O carro prosseguiu pela estrada em direção a Long Island. Segundo Heliot o Acampamento Meio-Sangue, que seria meu novo internato a partir de agora, ficava na costa de Long Island onde semi-deuses poderiam ficar seguros.

Enquanto a paisagem avançava Cristie e eu acabamos caindo no sono, abraçados. Sabe aqueles sonhos que eu disse que tinha? Dessa vez foi bem grotesco.

Estava de volta à sala de audição, tocando a música da minha avaliação, o piano dessa vez parecia em maior harmonia comigo, dessa vez eu me lembrava de ter respirado direito e o resto foram meus dedos martelando as teclas sem pensar muito no que fazia. Quando terminei a apresentação ouvi os aplausos, mas não eram dos avaliadores, havia apenas uma pessoa na bancada. Um homem com seus 22 anos, loiro, de pele bronzeada, cabelo perfeito, olhos azuis, vestido como um badboy e um sorriso tão sacana que eu não tive dúvidas de quem se tratava.

— Você! — Gritei e se eu tivesse forças eu teria arremessado aquele lindo piano bem nos dentes de Apolo.

— Vamos com calma criança... — Pediu, com seu sorriso debochado.

— Seu irresponsável! — E avancei em sua direção com tanta raiva que por pouco eu não subi em cima da mesa. Eu queria vomitar tudo na cara dele, mais precisamente naqueles dentes brancos

— Dezesseis anos sem nenhuma notícia, você sequestrou a minha irmã de mim, da minha mãe e ainda por cima nem para proteger minha mãe serviu! — Eu comecei a dizer e meus olhos lacrimejavam de tanta raiva.

Comecei a enumerar tantas coisas que da maior parte eu nem me lembro. Ele ouviu, simplesmente permaneceu sentado ouvindo tudo que eu tinha pra dizer, sem se quer me interromper. E eu despejei todas as minhas mais profundas tristezas, minhas preocupações, minhas frustrações e tudo o mais que eu pudesse jogar em cima de meu pai divino. No final eu estava tremendo, com os olhos ardendo de tanto chorar. Me senti vazio e sem peso, dramaticamente me ajoelhei no chão, já sem vontade de dizer mais nada. Como se tudo o que eu queria esse tempo todo era extravasar aquela represa de palavras que nunca encontravam seu ouvinte.

Apolo levantou-se com calma e se dirigiu ao piano, tocando a mesma música que toquei com tal beleza, que pela primeira vez toda ela fez sentido, nenhuma nota era desperdiçada, como se ele mesmo a tivesse escrito e só ele pudesse executa-lá direito.

— Sua mãe amava essa música, toquei para ela no nosso primeiro encontro. — O que vi em seus olhos azuis foi uma lembrança doce, como se ao tocar ele revivesse todo o relacionamento com minha mãe de novo. Isso doeu o peito. Todo esse tempo eu achei que Apolo só havia se aventurado com minha mãe, mas naquele olhar eu pude perceber o quanto ele a amava.

— Ela me fez tocar um milhão de vezes, dizia que eu era parecido com você. — Eu disse levantando-me e me apoiando na mesa. Eu era parecido com ele.

— Sabe...Você e sua irmã são um caso especial, não podem ficar juntos. — Ele disse com tal firmeza que meus argumentos se desfizeram de imediato. — Esses anos que ela pediu foram especialmente difíceis para ela. Seus sonhos? Todos reais. — Ele parecia ver minha alma — Ela enfrentou todos os seus pesadelos noite após noite enquanto você dormia tranquilo em seus lençóis de seda. Zeus não permite que interfiramos tanto no destino de nossos filhos, mas mesmo ele sabe que o caso de vocês é especial. — Ele começou a folhear as partituras e de repente eu comecei a ver meus boletins com minhas excelentes notas. — A paciência dele tem fim, na verdade, ela é especialmente curta. Eu e minha irmã temos resistido, mas agora acabou. — E eu vi em seus olhos o quanto ele tentou, senti-me culpado por tudo que havia dito.

— Obrigado... — Eu disse e ele pareceu surpreso. Depois abriu o mais brilhante sorriso do mundo inteiro.

— Não me agradeça ainda, tenho a impressão que em pouco tempo você vai querer acertar uma flecha na minha genitália. — E gargalhou com a ideia, eu pensei em alguns dos bonecos que haviam recebido uma flecha nessa região.

Um trovão estremeceu o sonho e ele perdeu o foco, mas ainda consegui ouvir as últimas palavras do meu pai: "Eu amo vocês dois".

Acordei com o veículo girando vertiginosamente, derrapando na pista, perigosamente próximo de um abismo, estávamos quase capotando.

— Ainda bem que acordou, toma! — Disse, me passando uma pequena faca prateada. Aquilo parecia pesado em minhas mãos.

Heliot corria feito um piloto de formula 1 pela pista, os vinhedos de Long Island passando por mim feito um raio, enquanto alguns vultos negros acompanhavam-nos. Eram quadrúpedes e latiam feito cães. Um deles conseguiu abocanhar o retrovisor esquerdo do conversível antes de uma faca prateada fincar no crânio do lobo, tornando-o nada mais que um monte de poeira dourada.

A alcateia estava no nosso encalço, uivando e latindo na nossa direção. Eu tinha contado cinco, até aquele momento. Os dentes brancos e a baba escorrendo pela boca da criatura, os olhos vermelhos pareciam sedentos de sangue. O meu sangue.

Minha irmã se ergueu como uma verdadeira arqueira e logo os lobatos tinham se reduzido a pó dourado. Eu achei que acabaria ali, que estaríamos todos bem, mas o que aconteceu a seguir nem me deu tempo de ter reação.

Meu corpo foi impulsionado com violência pra fora do carro, jogando-me contra um arbusto denso, que amortecera a queda, que poderia ter sido fatal. Minha cabeça doía e eu sentia algo quente escorrer atrás da minha cabeça. Meu corpo estava todo lanhado, escoriações se espalhavam por ele todo e o meu braço esquerdo doía.

Me ergui parecendo mais um saco de pancadas que havia apanhado até não ter mais forças para reagir. Eu estava meio ciente do que tinha acontecido. Um dos lobos havia conseguido dar a volta e aparecerá na frente do carro, Heliot não teve tempo de frear e o atropelamos. O resto dominação da inércia.

Eu ainda estava com minha mão bem fechada no punho da faca, agradecido por ela não ter me ferido na confusão da batida.

Minha primeira reação foi procurar minha irmã, que eu não fazia a menor ideia de onde tinha parado, nem se estava viva. O carro parecia acabado, a frente da BMW havia sido totalmente amassada e seja lá o que fosse, não poderia ter sobrevivido, junto com os passageiros.

Foi quando vi a figura. Era negro e estava ferido, arrastando seu corpo pesado com a pata dianteira, ikhor dourado saía de sua boca, junto com a baba natural dos caninos. Apesar da seu corpo parcialmente amassado e imobilizado, a fúria em seus olhos vermelhos.

No início, imaginei que ele estivesse fugindo do recinto, mas, há cerca de dez metros da vagarosa criatura, estava o corpo da minha irmã, inconsciente pelo acidente, Héliot estava mais à frente, mas eu sabia que a criatura queria o sangue daquela que tinha acabado com sua alcateia.

Eu não acho que pensei muito. Antes que percebesse, meus pés já se moviam de encontro ao lobo. Ele demorou a perceber minha presença, tão focado estava em sua vontade de matar a caçadora.

Quando ele me notou, a faca já havia sido cravada em seu pescoço. A arma não entrou muito, eu não tinha tanta força com minha irmã e a musculatura do animal era robusta. A coisa rugiu furiosa com o dano e virou sua cabeça na minha direção.

Eu não tive muita reação e ele consegui pegar minha perna, numa bocada que me fez gritar de dor. Eu estava apavorado, mas a outra opção seria deixar ele pegar minha irmã é isso não estava em questão.

Ele mastigou minha panturrilha como se fosse um osso para ele roer e as lágrimas de dor saiam dos meus olhos com fartura, mas eu não quis parar. Soquei o rosto da criatura, esperando que ela soltasse, mas suas presas só continuavam a fincar-se mais na minha carne.

Foi então, no meio de todo aquele desespero, que pensei em socar o cabo da faca. Soquei feito um louco, desesperado e achando que não estava adiantando, mas eu não podia fazer outra coisa, que não chorar e socar.

Em pouco tempo as mordidas pararam e a criatura não respirava mais eu me deixei desmaiar.

Acordei na enfermaria do acampamento, recebendo os devidos cuidados. Segundo Heliot, o acidente causara barulho o suficiente para os guardas nas fronteiras perceberem do que se tratava.

Foram eles que nos levaram para o acampamento, onde fomos tratados na enfermaria.

***

— E essa perna? — Ela me perguntou, com seu olhar conspiratório.

— Cicatrizes são legais! — Revidei com um sorriso, mas minha perna estava boa. Meus irmãos cuidaram bem de mim. Foram dois dias, mas os medicamentos do chalé de Apolo era, poderosos.

O sol nascia preguiçosamente por entre as montanhas, deixando minha irmã belíssima sobre seus raios. Como não notei antes que existia a possibilidade dela ser minha gêmea? Nós éramos muito idênticos!

— Daqui para frente é contigo, maninho. — Minha irmã tinha lágrimas nos olhos assim como nos meus.

Ouvi um grasnado alto o suficiente para fazer meus ossos tremerem. Antes que eu percebesse uma criatura que era um misto de leão com águia pousou ao nosso lado. Minha irmã o acariciou e montou nele.

— Eu ganho um desses? — Disse abrindo o maior sorriso que pude dar.

— Quem sabe? — Eu ouvi sua voz ao longe e eu não precisava saber que ela tinha aquele brilho travesso ao falar.

Virei-me imediatamente para meu destino, atravessando a barreira não sabendo em quantas aventuras eu me meteria.

#1

Os Gêmeos do Sol  Empty Re: Os Gêmeos do Sol

por Hermes 26/11/16, 12:35 pm

Hermes

Hermes
Deus Olimpiano
Deus Olimpiano
Aron Tinuviel escreveu:
Nome da narração: Os Gêmeos do Sol
Objetivo da narração: Apresentar o personagem e sua trama.
Quantidade de desafios: 1 semi-desafio.
Quantidade de monstros: 1 muito debilitado.
Espécie dos monstros: Lobisomen.

Não me lembro quantas vezes respirei antes da primeira nota. Mamãe sempre dizia que eu costumava apressar-me para começar a tocar e, como minha respiração não estava de acordo com a música, geralmente isso fazia com que eu perdesse o tempo durante a execução. Ainda que quase imperceptivelmente para leigos, especialistas podiam notar com muita facilidade esse erro fatal para um músico.

"Yerushalaym Shel Zahav", uma canção que guardava uma tristeza profunda. A história da canção fora o que sempre fascinara minha mãe. Ela fora criada diante de uma cidade devastada, numa reconstrução melancólica e nostálgica, com a dor das lembranças de sua glória, mas com uma pequena faísca de esperança. E era essa faísca que fazia minha mãe chorar, ela me fazia tocá-la com frequência e sempre terminava chorando quando a música entrava em seu ápice. Eu sentia falta de acompanhamento de uma orquestra completa e um coral. Ah! Um coral tornaria o arranjo divino, mas não podia me dar esse luxo, não no exame bimestral.

Prossegui com a apresentação, tive de adicionar alguma notas no arranjo para não ficar um vago onde outros instrumentos complementariam. O piano me obedecia sem qualquer problema, o som do instrumento era incrível, um lindo Bosendörfer negro de cauda, tínhamos um desse em casa, mamãe gostava particularmente dessa marca.

Sabe o que é melhor no piano? É um instrumento que te permite extravasar toda a emoção de seu peito através de seus dedos. Quer chocar alguém? Adicione acordes dissonantes! Quer emocionar? Use acordes menores com leves toque nas teclas! Quer fazer o coração da pessoa pular? Use as oitavas mais baixas e veja as pessoas assustando-se aos poucos. Mamãe sempre dizia que a música era a mais poderosa das armas, eu sempre concordei.

Antes da última nota da música quase podia sentir os braços dela envolvendo-me com carinho. Como sentia falta desse toque. Sua cabeleira negra caindo como uma cascata pelos meus ombros depositando um beijo em minha bochecha, enquanto eu sentia suas salgadas lágrimas caindo em minhas mãos.

Ao final da apresentação levantei-me sendo aplaudido pelos quatro avaliadores, embora pudesse notar a expressão rabugenta de meu fã número 1: Heliot Underwood.

Não vou mentir, Heliot me irritava. Era o professor mais rigoroso que eu já vira. Possuía uma barba esquisita, cerrada e mal feita, terminando em uma barbicha ridícula que só completava sua cara de bode. Bochechas rechonchudas e coradas eternamente, como se maquiadas por blush permanente, que em nada ajudavam em seu tom de pele cobreado. Os cabelos encaracolados estavam meio cobertos por uma touca com as cores do Bob Marley. Sua barriga protuberante o obrigava a ficar um pouco afastado da mesa, mas ele me olhava como se dissesse: "Eu poderia contar pelo menos 3 arpejos que saíram muito errados ali, garoto!". Eu talvez estivesse disposto a concordar com ele, só talvez...

— Que performance magnífica, Sr, Tinuviel... — Comemorava a reitora, com os olhos lacrimejantes, emocionada, retirando-me de minha batalha mental com meu professor de interpretação. — ...Acácia teria ficado orgulhosa. — Disse entre umas palmilha e outras.

Acho que devo ter feito uma expressão não muito amigável, já que até Heliot lançou-me um olhar solidário. Agradeci, sabendo que havia passado no exame do terceiro bimestre. Mesmo que Heliot tentasse acabar com minha média, eu tinha executado uma boa apresentação.

O prédio das audições ficava em um pavilhão separado dos demais edifícios do Conservatório Saint Agnes, em que minha mãe tinha estudado quando tinha a mesma idade que a minha. O campus era gigante, com prédios que mesmo eu ainda não tinha conhecimento, com muitos filhos de intérpretes famosos espalhadas pelas centenas de cursos diferentes, com especialidades que envolviam instrumentos do mundo inteiro.. Os nomes que passaram por aqueles salões iam desde gênios da música clássica, até cantores muito populares. Um ótimo lugar para me internar, pensara Suzaku, o agente de minha falecida mãe.

Estava fazendo um ano desde o grande acidente. Um ano que o avião de Acácia Tinuviel caíra no meio do Atlântico enquanto ela rumava para uma apresentação. Mal funcionamento de algum dos aparelhos, engraçado já nem me lembrar qual era o nome da maquina responsável pela morte dela. Tão mais fácil esquecer quando ele estava no fundo do mar, provavelmente sendo morada para os peixes. Não conseguiram resgatar o corpo, comido por tubarões. Um triste fim para pianista tão famosa e tão jovem, disseram os jornais. Eu não sentia falta da pianista, sentia falta da minha mãe.

Para meu azar eu não tinha parentes que pudessem me criar, portanto fiquei sob a tutela do agente de minha mãe. Foram meses difíceis, até que ele veio com a ideia de me colocar em um internato para que eu estudasse música, dois problemas resolvidos. Não teria que cuidar de um marmanjo de 17 anos e poderia usufruir dos dólares que minha mãe havia deixado para meu tutor legal cuidar de mim até que eu fizesse 21 anos. Perfeito!

Andei muito até chegar no refeitório, já era hora de por alguma coisa no estômago antes que eu desmaiasse e isso seria indigno demais. Quando entrei, vi os rostos virando-se para acompanhar meus movimentos, isso muito me irritava. Eu sou bonito, sei disso, mas não precisam babar por mim toda vez que eu passo. Não importava o sexo, idade ou nicho social, minha presença parecia atrair a todos como se eu tivesse um campo de gravidade próprio. Não bastasse isso, eu parecia ter uma influência incomum na fala, se eu abrisse a boca para dar algum argumento, não importa quanto a pessoa pensasse, ele sempre parecia irrefutável, mas...pensando bem...não era com todos, o maldito Heliot nunca aceitava meus argumentos. Nunca!

— Como foi a audição? — Perguntou-me Cristie ao se sentar, com sua bandeja cheia de guloseimas não muito saudáveis.

Conheci Cristie Hunter no ano passado, quando ingressei no internato. Éramos da turma de calouros daquele ano e o trote da turma de música era uma audição semi-nu com todos os veteranos assistindo. Cristie participava de um time de handball antes de entrar para o internato, então seu corpo era naturalmente atlético, causando verdadeira comoção entre os mais velhos.

Veja bem...músicos e musicistas não tem muito tempo para dedicar-se a treinamentos, então pense qual seria a reação de um bando de nerds gordos demais ou magros demais, que pouco conseguiam um relacionamento de média duração, quando viram uma mulher de um metro e sessenta e cinco centímetros, com curvas de dar inveja em muitas modelos, entrar de lingerie vinho com sua pele bronzeada. Exatamente! Ninguém prestou atenção em como seu violino soava, mas eu notei o talento dela. A emoção com que tocava era surreal, minha mãe adoraria ouví-la. Quando acabaram as audições eu a procurei para dar minha opinião a respeito de sua performance, nunca mais desgrudamos.

Na verdade Cristie era muito parecida comigo, como se fosse uma versão feminina de mim mesmo, e isso assustava os demais! Muito! Por vezes perguntaram se éramos parentes, é claro que negávamos no início, mas depois começamos a achar engraçado e passamos a fingir ser gêmeos. Era hilário a cara das pessoas quando completávamos as frases um do outro.

Estávamos na mesa mais afastada do refeitório olhando os populares no centro fazendo uma algazarra desnecessária. Algumas pessoas do time de basquete me olhavam vez ou outra, mas só me juntaria a eles no final de semana. Confesso que evitava o máximo de contato possível com a maior parte do campus, mas fazia parte de um clube aqui e ali, apenas para manter-me distraído quando as partituras começavam a por-me louco.

— Toquei "Jerusalém de Ouro".— Disse e preparei-me para mais um olhar solidário, mas não veio. Cristie apenas começou a comer despreocupadamente.

— Não acho que foi sua melhor escolha... — Ela respondeu entre uma colherada e outra, e eu sabia que referia-se ao nível de dificuldade.

Conversamos sobre animosidades enquanto ela me atualizava de tudo que acontecera no campus desde nosso último encontro, que fora umas duas horas antes. Fiquei impressionado com a quantidade de acontecimentos, embora eu pudesse viver sem saber de nenhum deles.

Eram coisas banais, Cristie se interessava por elas, mas eu poderia morrer sem saber que Suzan havia dado um fora em Castro ou que Maggie e Sam haviam sido flagrados fazendo sexo atrás das arquibancadas — Essa particularmente era uma imagem da qual eu não necessitava, imagine dois mastodontes peludos brigando por hegemonia e terá algo bem parecido com a situação.

Embora não me interessasse, Cristie foi despejando as informações uma em cima da outra como sempre fazia, eu meio que ouvia, mas não prestava tanta atenção, hora ou outra fazia um comentário só para não deixá-la falando sozinha, mesmo que fosse desnecessário, Cristie era tagarela por natureza quando estava nervosa.

— Agora vamos ao assunto que realmente interessa... — Interrompi no meio de um relato muito interessante sobre os flautistas da orquestra realizando uma orgia, o que já era informação demais para mim. — ...O que houve? — Perguntei e ela fez cara de que não estava entendo, mas eu apertei meu olhos e ela cedeu.

— Minha tia quer me transferir, acha que não estou me saindo bem... — Disse e a comida pareceu menos interessante para ela, o que nunca acontecia.

Queria oferecer ajuda, mas música não é algo que possa ser ensinado em sua totalidade. Claro que teoria podia ser decorada, partituras podiam ser lidas e interpretadas literalmente, mas o que realmente torna um músico bom é seu ouvido, sua musicalidade. Não é algo que pode ser ensinado, trata-se da identidade do artista, nada mais. Eu sabia que as notas de Cristie vinham caindo com o tempo, mas o problema estava em tentar encaixá-la no estilo conservador de alguns professores que queriam uma execução perfeita e pouco individual.

— Não desista! Se puder ajudar, pode contar comigo. — E abri o melhor sorriso que pude.

Cristie pousou seu olhar em mim por um tempo maior, como se estivesse em transe olhando para uma lembrança perdida. Às vezes eu causava esse impacto nas pessoas, elas ficavam encantadas com esse sorriso, mesmo que eu não o desse sempre, quase todos ficavam reservados para ocasiões especiais.

O resto da conversa foi mais animado e eu permiti que ela continuasse com suas fofocas habituais, desviando a atenção de seu próprio problema, para concentrar-se nos das milhares de pessoas do campus, era uma observadora muito atenta.

Após o almoço, começavam as aulas complementares e eu passaria a tarde inteira esperando pelas seis horas, quando iniciavam-se as atividades extra-curriculares. Cristie ia para o clube de jornalismo, era uma das redatoras mais famosas do campus, sua coluna era a mais lida e comentada nos grupinhos de Saint Agnes e seu blog era um record de acessos. Se Cristie não desse certo como musicista, eu mesmo investiria em sua carreira como apresentadora de programas de fofoca.

Eu era membro do clube de arco e flecha, algo que fazia nenhum sentido, mas eu era bom com um arco. Não me peça uma explicação coesas de como cheguei a esse hobby, como as outras coisas estranhas da minha vida, era puro extinto.

O prédio do clube era enorme, a maior parte de seu território era da área de alvos que possuía 170 metros de comprimento. Os fundadores do clube não eram pessoas normais. Durante seus primeiros anos o clube trouxe troféus para o internato, mas atualmente não tínhamos nem uma estrela capaz de vencer se quer as regionais. Pelo menos não até eu entrar no clube.

Eu sou bom com o arco. Bom mesmo! Até fui indicado pelo clube para participar das competições, mas recusei. Eu precisava me concentrar na minha carreira como músico, gosto da arquearia, mas musica exige comprometimento total. Recentemente os veteranos estavam preocupados que o clube fosse fechado pelo internato e estavam muito perto de me convencer a entrar na próxima competição, eu gostava de ficar ali, principalmente porque podia alvejar minhas preocupações com muitas, muitas flechas!

Em pouco tempo já me encontrava na área de alvos. Era um lugar cercado por um muro com 6 metros de altura, bonecos de palha estavam dispostos de maneiras diferentes, com distâncias que iam de 10 até 120 metros, esses últimos eu tinha que subir numa plataforma para acertar. Também tinham os alvos móveis, um disparador de frisbies que fora programado pelo clube de desenvolvimento de software do campus com padrões irregulares. Eu tinha acesso livre a área de treinamento então ficava ali quanto tempo eu podia. Naquela noite era só eu e os bonecos, para a infelicidades dele.

Enquanto eu disparava as flechas eu me permiti pensar no sonho estranho que tivera.

Eu estava em uma colina ao lado de um grande pinheiro com uma espécie de tecido reluzente de ouro pendendo de um dos galhos, suas raízes de cobre entrelaçavam-se pela base do tronco não dando para discernir sua origem. Quando ouvi os sibilos imediatamente saltei para traz, percebendo que não eram raízes, mas serpentes.

Inúmeras serpentes de cobre se enroscavam-se no tronco do pinheiro, sibilando baixo, todas dormindo um pesado sono. Ainda tinha um corpo que eu não quis identificar, mas as escamas do que parecia ser um réptil gigante era de cobre, no mesmo tom das serpentes e eu não queria saber se pertenciam ao mesmo corpo, isso queimaria meus neurônios.

À minha frente, eu podia ver uma espécie de parede translúcida que subia até onde minhas vistas se perdiam. Fui impelido a atravessar a barreira, eu sabia que podia. O que encontrei ao atravessar o véu foi um vale primaveral com campos de morango, o oceano cinzento ao norte e, em seu meio, um agrupamento de chalés que formavam a letra ômega grega. Uma voz ecoou pelo vale dizendo que eu estava enfim em casa. Acordei em seguida.

Eu não conhecia aquele lugar, mas certamente a sensação que eu tinha toda vez que me lembrava dele era de lar. Nele eu me sentia protegido, acolhido, como se toda minha existência pudesse ser explicada naquele lugar. Eu tinha sonhos estranhos, alguns eram pesadelos terríveis em que eu fugia de monstros, outros eram de lugares da qual nem tinha ouvido falar, alguns desses eram tão fantásticos que sempre tive dificuldade de, se quer entender, mas todos esses sonhos pareciam reais, como se a realidade que vivo fosse uma mentira em que eu estivesse preso a vida toda e só em meus sonhos eu vivesse em plenitude. Eu não contaria isso para ninguém, nem mesmo para Cristie, na minha concepção eu já era estranho o suficiente.

Minha mente vagava sem rumo pelos meus problemas, hora ou outra eu me pegava imaginando que um dos bonecos, que eu acertava com tanto afinco, eram um desses monstros que me perseguiam. Eu não precisava me preocupar com a quantidade de flechas, haviam muitas aljavas dispostas na área de tiro. Em dado momento, como sempre acontecia, minha mente chegou a uma questão delicada para mim: Meu pai.

Minha mãe morrera há um ano, mas meu pai desaparecera há bem mais tempo. Sempre que minha mãe falava dele, era como se fosse um episódio louco e divertido de sua vida, uma aventura intensa e prazeirosa, mas totalmente efêmera. Por algum motivo ela sempre me comparava a ele, dizendo que éramos muito parecidos. Eu não gostava disso.

Apolo era um guitarrista que entrara de penetra numa das festas promocionais organizadas por Suzaku, dançou uma valsa com a dama da noite e apareceu no dia seguinte com uma Kawasaki na frente da casa da minha mãe. Meus avós tiveram um piripaque, mas bastou um sorriso de Apolo para convencê-los de que era um bom rapaz, mesmo vestindo uma jaqueta e calça de couro, coturnos e uma orelha adornada de piercings. Mamãe o descrevia sempre como um espírito livre e foi por isso que quando eu nasci, ele teve de partir. Ficar preso a uma família? Não era algo que combinava com meu pai, portanto num belo dia ele desapareceu, deixando Suzaku com um dor de cabeça tremenda controlando os tabloides o máximo que pôde, acho que a aversão por mim começou por aí.

Quando minha mãe morreu eu achei que ele me procuraria, tentaria reparar 15 anos de irresponsabilidade. Eu me negaria e nós brigaríamos! Eu enfim saberia seus verdadeiros motivos de ir embora, algo sobre me proteger de uma organização musical secreta. Eu descobriria que ele sempre esteve me protegendo das sombras, nós faríamos as pazes e teríamos um final feliz. Só que não! Acho que foi mais ou menos nessa idade que comecei a ficar amargo sobre sonhos e contos de fada.

Eu fiquei tempo demais no clube, incrivelmente eu havia feito um estrago nos alvos. Frisbies em pedaços se espalhavam pelos bonecos de palha alvejados de muitas maneiras diferentes, admito que em todos os alvos que abati minha mente projetava a imagem que eu tinha do meu pai, tenho a impressão que se Apolo aparecesse na minha frente ele iria virar um ouriço do mar de tantas flechas que eu empalaria nele.

A lua já estava alta nos céu e as lâmpadas noturnas estavam acesas, iluminando o campo  e lançando sombras agourentas por toda a parte. Eu nem havia percebido o cair da noite até aquele momento. Permiti-me pegar uma última flecha, estava na plataforma para tiros longos, quando notei algo sobre o muro.

Há uns 160 metros de minha posição uma figura negra se erguia, os olhos vermelhos fitando-me. A coisa uivou para a noite como um lobo e saltou, um salto de um muro de 6 metros e ele não se quebrou todo, o que me apavorou e me fez descer as escadas imediatamente, minha mente gritando para que eu corresse.

A figura caminhou sobre quatro patas por entre os bonecos e quando estava a 50 metros eu pude discernir seus traços. Era um lobo negro do tamanho de um cavalo, de sua boca escorria uma saliva tipicamente canina, os olhos perturbadoramente inteligentes, os pelos enriçados fizeram minha alma gelar imediatamente. A essa altura minhas pernas tremiam e eu tinha meu arco tencionado, a flecha apontando para a cabeça da criatura. Ele uivou e eu disparei a flecha que cravou-se no crânio do lobo, eu esperei que morresse, nenhum ser vivo sobreviveria a uma flechada na cabeça, mas aparentemente as leis da natureza não se aplicavam a ele.

Fiz a coisa mais inteligente que pude: Corri. Disparei pelo prédio do clube sabendo que ninguém estaria lá, ninguém me ajudaria. O lobo era rápido e eu jamais poderia com sua velocidade canina, mas eu felizmente conhecia melhor o prédio. Então disparei pelos corredores agilmente agradecendo mentalmente por ter dedicado todos os meus finais de semana às partidas amistosas de basquete, do contrário eu teria morrida umas cinco vezes.

Desci as escadas do prédio e estava com tanta pressa que demorei a notar a figura aos pés da escada. Um capuz cobria sua face, mas parecia humana. Estava com um arco prata apontando na minha direção, eu quis gritar, mas estava concentrado demais em fugir para fazer qualquer outra coisa, mas houve uma impressão, um pressentimento, um instinto, chame do que quiser, alguma coisa me dizia que a figura encapuzada não estava mirando em mim.

Quando ouvi as portas do clube se arrebentando eu apenas me abaixei e ouvi o zumbido da flecha prateada que cortou a noite fria e cravou-se no crânio do lobo. Eu ia iniciar uma nova fulga, mas fui coberto por pó de ouro, o lobo se fora.

Uma BMW conversível parou atrás da figura, dirigida por Heliot Underwood, mandando-me entrar tão desesperadamente que pensei haver mais daquelas coisas perseguindo-nos, foi incentivo suficiente. Pulei no banco de trás do carro, a figura entrou logo após e o carro arrancou pelas avenidas do campus em direção a saída.

— Que coisa era aquela? — Foi a primeira coisa que consegui dizer depois de recuperar o fôlego.

— Um lobo! — Respondeu simplesmente. A garota abaixou o capuz, revelando sua identidade.

Era Cristie, minha melhor amiga. Cristie estava com um sorriso travesso nos lábios, como se tivesse a maior das fofocas do campus para me contar, e eu sinceramente não fiquei nenhum pouco empolgado em saber do que se tratava.

— Oi pra você também, garoto! — Disse um Heliot sem gorro ao volante. Seja lá o que tivesse batido em sua cabeça, fora bem forte. Havia dois galos muito inchados, pareciam chifres. Ai Meu Deus! Eram chifres!

— Ah! — Gritei tão indgnamente que Cristie caiu na gargalhada. — Tem chifres na sua cabeça! - Heliot pareceu ofendido. - Porque tem chifres na cabeça dele? E porque você sabe usar um arco?

O mundo parecia ter virado de cabeça para baixo, mas Cristie me pediu calma. Demorou, mas eu deixei que ela falasse. Segundo ela, e eu não acreditava, os deuses gregos existiam, e continuavam com suas manias de procriar com os humanos. Eu e ela éramos filhos de deuses e Heliot era um bode — sátiro — que protegia esses filhos de deuses. O trabalho dele era procurar por esses filhos, protegê-los e guiá-los para um tal de Acampamento Meio-Sangue, onde as proles dos deuses eram treinados e preparados para se proteger contra monstros, como o lobo que ela acabara de matar.

- Eu sou filho de... - O nome de meu pai pesava em sua mente. Não podiam ser as mesmas pessoas. Não podia ser o mesmo Apolo.

- Nós somos... - Cristie fez aquela cara de tenho o maior babado do mundo para você - ...Apolo! - Ela disse e como se para confirmar uma luz brilhou em pleno ar iluminando o carro. Pelo retrovisor eu vi o holograma de uma harpa dourada brilhando acima de minha cabeça, mais tarde saberia que aquele era o símbolo de meu pai.

- Tem mais... - E dessa vez sua expressão misturava-se em ansiedade e preocupação. - Nós somos irmãos... - Ela disse, mas depois resolveu corrigir-se. - ...Não só por parte de pai, nós somos gêmeos!

Mais um pouco e eu voaria pelo parabrisa. Heliot havia freado o carro tão abruptamente que mesmo ele bateu a cabeça no volante, adicionando mais um galo a seus chifres. Ele virou para trás esfregando o novo adereço olhando de mim para Cristie indignado. Minha expressão era de choque total. Aquilo só podia ser uma brincadeira de muito mal gosto. Eu juro que fiquei olhando ao redor imaginando onde estavam as câmeras.

- Gêmeos? De Apolo? - Heliot parecia assombrado pelas possibilidades do futuro. - Isso explica aquela quantidade grotesca de monstros... - Virou-se para a estrada e acelerou o carro em altíssima velocidade. Aparentemente a informação fizera com que sua pressa aumentasse.

- Isso é impossível! - Eu consegui dizer.

- Impossível? É bem perto disso na verdade, mas não chega a ser. - Heliot disse antes de fazer uma curva fechada demais para velocidade que estávamos. Eu fui jogado no colo de minha irmã.

— Mamãe não sabia. — Talvez realmente fossemos gêmeos, pois essa fora a primeira questão que pairou em minha mente. — ...Gêmeos semideuses são raros... — E o tom que ela usou me fez pensar que ser raro não era algo bom. — Era perigoso nos mantermos juntos, então, quando nascemos, Apolo embaralhou a mente da equipe médica e levou-me para a nossa tia, Ártemis. — Ótimo, mais uma para a conta de meu pai divino idiota, nem a própria filha criou. — Cresci entre as caçadoras enquanto você crescia com a mamãe. — Pela primeira vez pensei nas perguntas que Cristie fazia a respeito da minha mãe. Eu sempre achei ser curiosidade pela grande musicista. Me arrependi por não ter descrito melhor a nossa mãe.

Eu fiquei olhando para os olhos castanhos de minha irmã. Não era difícil notar a semelhança entre nós dois, mas só agora eu pensei em todas elas.

— Você sabia desde o... — Um bolor se formou em minha garganta e eu estava com dificuldades de terminar minhas frases.

— ...Início? — Completou ela. — Não desde o início, quer dizer eu era um bebê. Mas sim, eu cresci ciente de nós. Tia Ártemis não gosta de mentiras então ela me contou tudo quando estava na idade para compreender. — Algo em sua expressão me deu a impressão que não tinha idade para compreender. — Fui criada pelas Caçadoras. — E me explicou o que significava ser criada por um monte de meninas de doze anos que eram duronas o suficiente para arrebentar um bar inteiro de motoqueiros selvagens. — Quando a mamãe morreu eu sabia que você estava sozinho, então pedi para Tia Ártemis me liberar da caçada. Ela me deu três anos. — E eu vi em sua face o quanto foi difícil para ela todo esse tempo manter segredo.

Abracei minha irmã com força e intensidade o suficiente para recuperar todos os anos de abraços perdidos. Acho que choramos de felicidade, mas jamais admitiria isso.

O carro prosseguiu pela estrada em direção a Long Island. Segundo Heliot o Acampamento Meio-Sangue, que seria meu novo internato a partir de agora, ficava na costa de Long Island onde semi-deuses poderiam ficar seguros.

Enquanto a paisagem avançava Cristie e eu acabamos caindo no sono, abraçados. Sabe aqueles sonhos que eu disse que tinha? Dessa vez foi bem grotesco.

Estava de volta à sala de audição, tocando a música da minha avaliação, o piano dessa vez parecia em maior harmonia comigo, dessa vez eu me lembrava de ter respirado direito e o resto foram meus dedos martelando as teclas sem pensar muito no que fazia. Quando terminei a apresentação ouvi os aplausos, mas não eram dos avaliadores, havia apenas uma pessoa na bancada. Um homem com seus 22 anos, loiro, de pele bronzeada, cabelo perfeito, olhos azuis, vestido como um badboy e um sorriso tão sacana que eu não tive dúvidas de quem se tratava.

— Você! — Gritei e se eu tivesse forças eu teria arremessado aquele lindo piano bem nos dentes de Apolo.

— Vamos com calma criança... — Pediu, com seu sorriso debochado.

— Seu irresponsável! — E avancei em sua direção com tanta raiva que por pouco eu não subi em cima da mesa. Eu queria vomitar tudo na cara dele, mais precisamente naqueles dentes brancos

— Dezesseis anos sem nenhuma notícia, você sequestrou a minha irmã de mim, da minha mãe e ainda por cima nem para proteger minha mãe serviu! — Eu comecei a dizer e meus olhos lacrimejavam de tanta raiva.

Comecei a enumerar tantas coisas que da maior parte eu nem me lembro. Ele ouviu, simplesmente permaneceu sentado ouvindo tudo que eu tinha pra dizer, sem se quer me interromper. E eu despejei todas as minhas mais profundas tristezas, minhas preocupações, minhas frustrações e tudo o mais que eu pudesse jogar em cima de meu pai divino. No final eu estava tremendo, com os olhos ardendo de tanto chorar. Me senti vazio e sem peso, dramaticamente me ajoelhei no chão, já sem vontade de dizer mais nada. Como se tudo o que eu queria esse tempo todo era extravasar aquela represa de palavras que nunca encontravam seu ouvinte.

Apolo levantou-se com calma e se dirigiu ao piano, tocando a mesma música que toquei com tal beleza, que pela primeira vez toda ela fez sentido, nenhuma nota era desperdiçada, como se ele mesmo a tivesse escrito e só ele pudesse executa-lá direito.

— Sua mãe amava essa música, toquei para ela no nosso primeiro encontro. — O que vi em seus olhos azuis foi uma lembrança doce, como se ao tocar ele revivesse todo o relacionamento com minha mãe de novo. Isso doeu o peito. Todo esse tempo eu achei que Apolo só havia se aventurado com minha mãe, mas naquele olhar eu pude perceber o quanto ele a amava.

— Ela me fez tocar um milhão de vezes, dizia que eu era parecido com você. — Eu disse levantando-me e me apoiando na mesa. Eu era parecido com ele.

— Sabe...Você e sua irmã são um caso especial, não podem ficar juntos. — Ele disse com tal firmeza que meus argumentos se desfizeram de imediato. — Esses anos que ela pediu foram especialmente difíceis para ela. Seus sonhos? Todos reais. — Ele parecia ver minha alma — Ela enfrentou todos os seus pesadelos noite após noite enquanto você dormia tranquilo em seus lençóis de seda. Zeus não permite que interfiramos tanto no destino de nossos filhos, mas mesmo ele sabe que o caso de vocês é especial. — Ele começou a folhear as partituras e de repente eu comecei a ver meus boletins com minhas excelentes notas. — A paciência dele tem fim, na verdade, ela é especialmente curta. Eu e minha irmã temos resistido, mas agora acabou. — E eu vi em seus olhos o quanto ele tentou, senti-me culpado por tudo que havia dito.

— Obrigado... — Eu disse e ele pareceu surpreso. Depois abriu o mais brilhante sorriso do mundo inteiro.

— Não me agradeça ainda, tenho a impressão que em pouco tempo você vai querer acertar uma flecha na minha genitália. — E gargalhou com a ideia, eu pensei em alguns dos bonecos que haviam recebido uma flecha nessa região.

Um trovão estremeceu o sonho e ele perdeu o foco, mas ainda consegui ouvir as últimas palavras do meu pai: "Eu amo vocês dois".

Acordei com o veículo girando vertiginosamente, derrapando na pista, perigosamente próximo de um abismo, estávamos quase capotando.

— Ainda bem que acordou, toma! — Disse, me passando uma pequena faca prateada. Aquilo parecia pesado em minhas mãos.

Heliot corria feito um piloto de formula 1 pela pista, os vinhedos de Long Island passando por mim feito um raio, enquanto alguns vultos negros acompanhavam-nos. Eram quadrúpedes e latiam feito cães. Um deles conseguiu abocanhar o retrovisor esquerdo do conversível antes de uma faca prateada fincar no crânio do lobo, tornando-o nada mais que um monte de poeira dourada.

A alcateia estava no nosso encalço, uivando e latindo na nossa direção. Eu tinha contado cinco, até aquele momento. Os dentes brancos e a baba escorrendo pela boca da criatura, os olhos vermelhos pareciam sedentos de sangue. O meu sangue.

Minha irmã se ergueu como uma verdadeira arqueira e logo os lobatos tinham se reduzido a pó dourado. Eu achei que acabaria ali, que estaríamos todos bem, mas o que aconteceu a seguir nem me deu tempo de ter reação.

Meu corpo foi impulsionado com violência pra fora do carro, jogando-me contra um arbusto denso, que amortecera a queda, que poderia ter sido fatal. Minha cabeça doía e eu sentia algo quente escorrer atrás da minha cabeça. Meu corpo estava todo lanhado, escoriações se espalhavam por ele todo e o meu braço esquerdo doía.

Me ergui parecendo mais um saco de pancadas que havia apanhado até não ter mais forças para reagir. Eu estava meio ciente do que tinha acontecido. Um dos lobos havia conseguido dar a volta e aparecerá na frente do carro, Heliot não teve tempo de frear e o atropelamos. O resto dominação da inércia.

Eu ainda estava com minha mão bem fechada no punho da faca, agradecido por ela não ter me ferido na confusão da batida.

Minha primeira reação foi procurar minha irmã, que eu não fazia a menor ideia de onde tinha parado, nem se estava viva. O carro parecia acabado, a frente da BMW havia sido totalmente amassada e seja lá o que fosse, não poderia ter sobrevivido, junto com os passageiros.

Foi quando vi a figura. Era negro e estava ferido, arrastando seu corpo pesado com a pata dianteira, ikhor dourado saía de sua boca, junto com a baba natural dos caninos. Apesar da seu corpo parcialmente amassado e imobilizado, a fúria em seus olhos vermelhos.

No início, imaginei que ele estivesse fugindo do recinto, mas, há cerca de dez metros da vagarosa criatura, estava o corpo da minha irmã, inconsciente pelo acidente, Héliot estava mais à frente, mas eu sabia que a criatura queria o sangue daquela que tinha acabado com sua alcateia.

Eu não acho que pensei muito. Antes que percebesse, meus pés já se moviam de encontro ao lobo. Ele demorou a perceber minha presença, tão focado estava em sua vontade de matar a caçadora.

Quando ele me notou, a faca já havia sido cravada em seu pescoço. A arma não entrou muito, eu não tinha tanta força com minha irmã e a musculatura do animal era robusta. A coisa rugiu furiosa com o dano e virou sua cabeça na minha direção.

Eu não tive muita reação e ele consegui pegar minha perna, numa bocada que me fez gritar de dor. Eu estava apavorado, mas a outra opção seria deixar ele pegar minha irmã é isso não estava em questão.

Ele mastigou minha panturrilha como se fosse um osso para ele roer e as lágrimas de dor saiam dos meus olhos com fartura, mas eu não quis parar. Soquei o rosto da criatura, esperando que ela soltasse, mas suas presas só continuavam a fincar-se mais na minha carne.

Foi então, no meio de todo aquele desespero, que pensei em socar o cabo da faca. Soquei feito um louco, desesperado e achando que não estava adiantando, mas eu não podia fazer outra coisa, que não chorar e socar.

Em pouco tempo as mordidas pararam e a criatura não respirava mais eu me deixei desmaiar.

Acordei na enfermaria do acampamento, recebendo os devidos cuidados. Segundo Heliot, o acidente causara barulho o suficiente para os guardas nas fronteiras perceberem do que se tratava.

Foram eles que nos levaram para o acampamento, onde fomos tratados na enfermaria.

***

— E essa perna? — Ela me perguntou, com seu olhar conspiratório.

— Cicatrizes são legais! — Revidei com um sorriso, mas minha perna estava boa. Meus irmãos cuidaram bem de mim. Foram dois dias, mas os medicamentos do chalé de Apolo era, poderosos.

O sol nascia preguiçosamente por entre as montanhas, deixando minha irmã belíssima sobre seus raios. Como não notei antes que existia a possibilidade dela ser minha gêmea? Nós éramos muito idênticos!

— Daqui para frente é contigo, maninho. — Minha irmã tinha lágrimas nos olhos assim como nos meus.

Ouvi um grasnado alto o suficiente para fazer meus ossos tremerem. Antes que eu percebesse uma criatura que era um misto de leão com águia pousou ao nosso lado. Minha irmã o acariciou e montou nele.

— Eu ganho um desses? — Disse abrindo o maior sorriso que pude dar.

— Quem sabe? — Eu ouvi sua voz ao longe e eu não precisava saber que ela tinha aquele brilho travesso ao falar.

Virei-me imediatamente para meu destino, atravessando a barreira não sabendo em quantas aventuras eu me meteria.


|Missão Aceita|
Experiência a Receber: 1200
Dracmas a Receber: 1200

Observações Importantes:

É uma história e trama realmente criativa. Apesar de haver apenas um desafio e ele não sendo lá grande coisa, muitas características psicológicas e interpretativas do personagem foram exploradas, o que para mim, vale muito mais do que um monte de pancadaria sem sentido. :sir:

Aguardarei pelo desenvolver do personagem, não apenas nas habilidades de combate como também da trama em si. Parabéns.

|ATUALIZADO|

#2

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