Liguei o chuveiro.
Senti a água escorrer por meu corpo. As gotas gélidas se chocando fortemente contra minha pele nua, como tiros atingindo diretamente minha alma. Me fazendo tremer. Me fazendo pensar. Me fazendo refletir.
Como muitas poucas coisas fazem.
Minha mente se perdia em uma imensidão de pensamentos, presa em um mar furioso de memórias e recordações. Algumas, que a muito tempo desejo esquecer. Mas que, de alguma forma, sempre vêm a tona para perturbar-me. Esgueirando-se pelas beiradas de minha sanidade, sussurrando palavras de desdém, sem o menor sentido. Outras, tratam-se do que tenho de mais belo e valiosos, e que escondo na parte mais funda e obscura de meu subconsciente. Longe de intrusos, longe de curiosos. E longe de ladrões.
Afinal, não são as memórias as responsáveis por moldar-nos como somos? De definir nosso carácter, nossa identidade própria?
...
Pisquei, saindo de um estado de quase torpor, e fugindo dos pensamentos que surgiriam a seguir. Estranho, disse a mim mesmo em minha mente. De fato, concordei oralmente.
Desliguei o chuveiro.
Levei minhas mãos molhadas a uma toalha, pegando-a e secando meu rosto, primeiramente, e meu corpo, em seguida. Ao final, enrolei-me na toalha, sai do banheiro e senti o ar fresco da tarde chocar-se contra meu torso nu.
E então, algo me surpreendeu.
Veja bem. Quando se é um semideus,e você vive em um mundo de deuses e monstros, faz parte de sua rotina deparar-se com coisas estranhas. E ver um gorila parado no meio do seu chalé não faz parte dessas estranhezas. Tanto que chega a ser, no minimo, bizarro. E tanto, que por um momento, pensei ainda estar sob efeito do vinho ingerido mais cedo. Mas não, estava totalmente sóbrio. O que também é estranho.
Olhei para o gorila, encarando seus olhos animalescos. E ele fez o mesmo, retribuindo com um olhar travesso, malandro e, mais uma vez, estranho.
Não tanto quanto ele roubar minhas roupas e, logo em seguida, fugir.
– O que? – Foi o único som que produzi, enquanto olhava para o símio correndo ao longe. – O QUE? – Gritei dessa vez. Assimilando, por fim, toda a situação.
E assim como o símio, corri. Com uma toalha enrolada na cintura, um anel esquisito no dedo e brandindo uma espada loucamente, além de gritando ameaças e xingamentos direcionadas ao animal. Talvez eu estivesse chamando muita atenção. E talvez eu devesse ter vestido pelo menos uma cueca antes de sair correndo pelo Acampamento, mas né, na pressa, esquecer algo é inevitável. Só fui me tocar de meu erro quando a toalha escorregou de meus dedos, caindo no chão e deixando à mostra meu corpo nu, exposto para dezenas de semideuses tarados.
Deveria envergonhar-me, mas pouco me importei. Se quisessem olhar, que olhassem. Se não, foda-se.
E então, voltei a correr loucamente. Dessa vez, entrando na floresta e seguindo o gorila por alguns minutos, até que por fim paramos no meio de inúmeras árvores. Como se planejado, o gorila largou minhas roupas e ficou fazendo coisas de símio. Mais uma vez, estranho.
Olhando para tal cena, decidi caminhar até minhas roupas, calmamente e lentamente, para não provocar o gorila, ou pelo menos não irritá-lo. Pegando-as, me afasto um pouco do animal. Tudo certo, visto apenas a cueca, enquanto dou uma piscadela para uma dríade que por aqui passava, e que, por sinal, não tirava o olho do meu corpo, em especial de minha intimidade
– Então, por que me trouxe aqui? – Perguntei ao gorila, embora não esperasse nenhuma resposta. Ele é um animal, antes de tudo. E animais não falam. Pelo menos os normais. Mas né, qual a chance disso ficar ainda mais estranho?