Um dia normal, sem causalidades de estresses e qualquer outra coisa estranha acontecendo na vida de campista. Era isso que eu gostaria de contar, mas.... é isso mesmo que eu vou contar. Entendo e desconfio que pareça uma situação longe do comum, mas tal dia realmente aconteceu quando fui visitar a Floresta do acampamento alguns dias atrás. Como de costume, uma vez a cada sei lá quanto tempo saio sorrateiro para um momento de introspecção refletindo nas coisas que acontecem e como posso contornar os problemas para uma solução. Sei que não é totalmente "invisível" de tantos radares mágicos que existem espalhados por aqui e ninguém liga se tu vai pensar na vida ou matar monstros por esporte, mas faço o que está disponível no meu rol de possibilidades.
Seguindo em direção a mata, lá chego em poucos minutos de caminhada com respiração tranquila e pele refletindo os raios de sol da manhã que se derramavam por entre as copas das árvores. As correntes de ar morno do verão perpassam fazendo cócegas nas bochechas como uma saudação de boas-vindas idílica anunciando felicidade eminente escondida, apenas esperando que seja descoberta por algum aventureiro curioso. Enquanto me aprofundava no meio natural só escutava o farfalhar das folhas dançando ao sabor do vento, porém, quando menos esperava que algo mudasse, um som claro e agudo rompe a monotonia.
Procuro em redor a origem do canto misteriosamente agradável e me deparo com uma criatura que jamais tinha visto antes, surpreso por encontrar uma espécie tão diferenciada das que tinha visto em tempo do Ensino Médio. Sua penagem preta e alaranjada destacava-se da paisagem verde e marrom trazendo mais tom ao ambiente. Encaro a ave por mais alguns instantes aproveitando seu som.


Sem perceber começo a cantarolar junto com o pássaro e ao me dar conta vejo que mais lembro a branca de neve desacompanhada dos outros animais a um adolescente normal. Se é pra fazer show então que seja a altura de um clássico. Harmonizando as notas cantadas com a ave laranja o nosso dueto ficava mais intenso revelando a pureza de intenção despreocupada do momento. Vez ou outra parecia que estávamos lendo os pensamentos um do outro na alternância de trechos melódicos dando espaço para explorarmos nossa expressão vocal através de ornamentos - confesso que não resisti a trinados e fui agradavelmente surpreendido pela agilidade precisa do pássaro em imitar perfeitamente cada intervalo musical. Eu estava vivendo o sonho de toda dupla de cantores: dueto graciosamente síncrono e afinado.


Alguns outros pássaros que supus estarem nas redondezas se aproximavam, talvez interessados no canto ou simplesmente pela falta do que fazer então decidiram apreciar o ato. Alguns até se juntaram a nós com seus timbres diferenciados enriquecendo a cena. Além de imitar os intervalos, a ave alaranjada que solava comigo imitava o canto das outras espécies. Devo admitir que precisei focar minha visão nela para perceber que era a mesma, pois em vários momentos pensei que havia alçado voo - e ainda estava lá. Por minha natureza inata e a de estudo também fui explorando minhas Habilidades Musicais a cada compasso que criávamos analisando o quão musicista o canoro animal chegaria a ser. Claro que meu tato para análise ainda era restrito devido a infinidade de conhecimentos musicais aguardando serem descobertos, no entanto, bastava ao momento o deleite da percepção. Como um flash passou pela minha mente uma ideia pouco usual que agarrei tão rápido quanto veio. E se eu tentasse fazer semelhante ao pássaro? Se eu tentasse imitar os sons como ele fazia?

Não sou o melhor arqueiro dentre meus irmãos e muito menos um instrumentista de alta performance, a música é um passatempo para falar a verdade. Não me dedico a curar os outros pelo mero capricho que prefiro feri-los, logo não é surpresa minhas habilidades como curandeiro estarem enferrujadas. Para acabar rápido esse momento de autorreflexão barata, nem sei por qual motivo acabei sendo filho de Apolo! Deve haver alguma outra coisa em que eu possa me desenvolver, algo que seja possível explanar ao máximo todo o meu potencial ainda não descoberto. E, se eu não consigo achar o que procuro aqui, talvez seja a hora de sair do acampamento para buscar fora o que eles não são capazes de me dar. Obviamente, em algum momento futuro, pagarão pelo meu tempo perdido. Mas este conto não é sobre vingança , é sobre como conseguir um truque eficaz em situações inimagináveis.

Explicação Semi-técnica na Narrativa:

Pensando em tudo isso, resolvi aplicar os conhecimentos na prática. Berrei estranho até para mim mesmo, alguns pássaros voaram assustados imediatamente e pensei e desistir por vários momentos pela frustração de não conseguir imitá-los e pelo alto senso de vergonha ainda que aparentemente sozinho no meio do mato para treinar a extensão vocal e gritando igual louco experimentando as modulações necessárias à assimilação de novas reproduções. Nessas tentativas descobri que poderia juntar sons diferentes de modo simultâneo preservando as características de cada um, porém, quanto mais eu tentava combinar a polifonia numa única textura musical de modo mais complexo não conseguia ter êxito. Terei de treinar mais para dominar esta técnica.

Não foi fácil e precisei voltar outros dias ao lugar que parecia diferente a cada retorno porque parecia um local melhor ao chalé. Não queria ser rotulado como biruta, já bastam outros termos que não convém ao caso. Entretanto, sempre podia contar com os duetos com o pássaro bicolor preto e laranja que descobri em pesquisas ser popularmente conhecido como corrupião, ou sofrê ou ainda concriz; até ele ir embora espantado pelos meus estardalhaços cômicos. A única questão que ainda me incomodava era como uma espécie tão distante veio parar nessa floresta mágica cheia de surpresas. Talvez um dia eu viaje até seu habitat natural e cante com outros de sua espécie. Até lá, vou utilizar e desenvolver esse gravador polifônico, mesmo sabendo que posso me meter em encrenca se causar algumas desavenças, se não tomar cuidado.