A cena é típica: a guria de corset preto, saia preta, meia preta, bota preta e calcinha preta parada no meio do cemitério, contemplando com seus olhos cheios de maquiagem (impecavelmente preta, é claro) as oferendas dos vivos àqueles que já não respiram mais. Ela rouba uma rosa de um buquê, enfiando o nariz entre as pétalas vermelho-sangue, e encara as estátuas que decoram os mausoléus com a dignidade de quem já faz parte daquele cenário.
Ela mal faz ideia de como está perto de virar moradora permanente do lugar – nem sempre andar entre os mortos serve para contemplar a fragilidade da vida, às vezes uma garota só quer passar um momento sozinha enquanto aprecia a arquitetura.
Leva algum tempo para perceber que o cemitério ganhou uma escultura nova: bem na colina, contrastando com o mármore branco da lápide que sombreia, está um anjo negro. As asas são tão grandes que poderiam cobrir uma barca, o que faz o corpo parecer pequeno e mirrado. Uma obra incrível nos mínimos detalhes: parece viva. Até mesmo mexe a cabeça para ver a guria!
Isso é de assustar, mas como uma criança curiosa seguindo uma borboleta para o abismo ela começa a andar em direção à estátua nem-tão-estática.
O anjo logo parece mais carne do que pedra entalhada. Seu olhar canta – emana tristeza num azul tão profundo que arrepia a nuca de qualquer um. Não é só a nuca que ele arrepia, é claro, com esse rosto de querubim e foice gigante equilibrada no braço, mas é o que faz a garota parar quando os lábios negros se separam e sussurram:
— Lamento.A cabeça se inclina devagar e leva as íris cantantes para a lápide cor de osso. Tem um nome escrito nela – Moonbean Velázques. Assim que percebo isso passo a ver as coisas pelos olhos da guria, e não mais de fora. No outro eu entendo: ah, droga. Esse é meu nome. Essa sou
eu. E a data de morte... Dou um passo para trás, sentindo como se a terra fosse a qualquer hora me puxar para dentro. Engulo a seco e encaro o rosto angelical.
— Erraram o ano por algumas décadas. — Um sorriso treme no canto da minha boca – cínico, apavorado, como um homem jurando inocência na frente da forca.
— E não pretendo vir te buscar tão cedo, por isso, lhe aconselho a correr... Ou esse prazo vai se encurtar mais ainda.Abaixo os olhos mais uma vez e sinto uma bolha de medo inflar em meu peito – a data diminuiu.
***
NYC, banheiro do metrô, soneca nada glamurosa na privada.O barulho de alguém espancando a porta e perguntando
“você morreu aí dentro?!” me tira do pesadelo estranho com anjos e cemitérios. Eu esfrego os olhos. Leva um tempo para lembrar por que estou ali, tempo em que a pessoa continua esmurrando a madeira.
— Sim, eu morri — respondo sem qualquer humor.
— E você é um médium, parabéns. Agora para de encher o saco antes que eu possua seu corpo.Fico de pé e abro a porta com uma tranquilidade fajuta. A mulher não sabe como reagir. Isso não me importa – o sonho do cemitério e o pequeno detalhe de que eu realmente estou correndo por minha vida já enchem minha cabeça.
— Só um sonho... — murmuro sozinha, passando pelas pias e me olhando no espelho. Minha imagem é bem diferente da do pesadelo: o delineador está borrado, o resto da maquiagem desapareceu e no lugar das roupas saídas de um
revival vitoriano está uma jeans e um
cropped da Vampira. Aquilo me acalma: nada de túmulos, eu ainda estou bem e escondida no banheiro do metrô. Mas então vejo a adaga na minha mão.
A coisa escapa para o chão e um palavrão pula da minha boca. Respiro fundo para tentar acalmar o batuque no meu peito. Aquilo definitivamente
não estava comigo antes, meus avós tinham uma política séria de "paz, amor e nada de objetos afiados fora da cozinha".
Na mesma hora sinto cheiro de cachorro molhado. Passos fortes ecoam lá fora, vindo para o banheiro. Eles são pesados como os de um soldado marchando, ou de uma pessoa muito grande e desengonçada.
É estranho. Estranho demais. Pego a arma de volta e lanço um olhar preocupado para a porta. O cheiro é horrível, eu tenho que me esconder. Entro outra vez num dos reservados do banheiro – sujo e sem papel higiênico, o que explica a moça espancando a porta do meu antigo – e fecho a trava. Tento subir na privada para não mostrar meus pés, torcendo pela primeira vez para realmente ser doida e estar alucinando. Torcer, para minha infelicidade, não vai mudar o que eu já sei: alguém...
Alguma coisa está vindo. E até ela passar da minha porta eu não tenho para onde correr.