Daniel saiu do palácio tirando suas próprias conclusões e logo as compartilhou com Fenrir. Apesar de achar que teria que descer ao Tártaro, o filho de Hades certamente não se atiraria no precipício sem antes ter certeza, por isso, resolve ir aos campos de punição investigar, além de pedir para o seu dragão fazer o mesmo.
No caminho para os campos de punição, Daniel passou pelo Elísio, e não pode deixar de observá-lo por um tempo. As construções tão brancas e lindas parecia um quadro num lugar tão escuro e deprimente como o submundo, e ainda pior, era ver a Ilha dos Abençoados - para os semideuses que reencarnavam três vezes, e nas três vidas conquistavam o Elísio - pois era ainda mais bela, com uma areia branca e fina, a água cristalina e coqueiros e palmeiras decorando o lugar. Um pedacinho de paraíso na terra dos mortos. Daniel não podia deixar de se perguntar se um dia chegaria lá.
Depois de algum tempo observando o lugar, Daniel volta a realidade, lembrando que sua missão era importante e não permitiria devaneios como aquele.
Logo ele estava de frente para os campos de punição. Parecia um pecado que lugares tão opostos ficassem tão próximos um do outro, um desacato à física, às leis da humanidade. A imagem dos campos era tão horrível quanto os berros que de lá saiam. Mesmo estando fora dos campos, Daniel podia ver fogueiras no horizonte e podia ver a diferença do ar. Se o ar do submundo no geral já era ruim, o dali era 10 vezes pior: pesado, escuro e denso. Mesmo assim, o garoto preferiu entrar.
A primeira coisa que ele notou, foram os ceifadores. Ele nunca parou pra pensar que haveria mais ceifadores de Tânatos, além dos colegas que ele conhecia no Acampamento, normalmente garotos e garotas extremamente estranhos, até mesmo na visão de um filho de Hades. Ali eles eram um pouco diferentes, pois usavam mantos que tornava impossível identificá-los e não pareciam jovens. Outra coisa que impressionou o garoto, foi o fato de esses ceifadores, aparentemente vigias, tinham dificuldades para controlar as almas punidas. Ele tinha praticamente certeza de que aquilo não era normal. O normal seria eles andarem tranquilamente por ali, somente impondo respeito sobre as almas punidas, que deveriam sofrer sem reclamar, mas a cena que ele via era de seres dos mais estranhos tipos, sofrendo penas horríveis, tentando se livrar das prisões e lançando pragas aos ceifadores, que pareciam estar gastando muita energia para mantê-los presos. Daniel tentou se aproximar de alguns, mas percebeu rapidamente que eles não seriam amistosos com ele e resolveu se afastar.
O semideus nunca se sentira tão impotente. Ele poderia ser um semideus poderosíssimo, um herói, mas nenhum ser daqueles parecia dar a mínima para quem ele era. Os mortos deveriam servir Daniel, mas somente no mundo dos vivos ou as almas dos Asfódelos, que eram vazias demais para ter uma opinião. Aquelas almas e seres estavam além de seu controle. Provavelmente havia semideuses velhos ali, como ceifadores, e os seres punidos deviam ter feito coisas mais horríveis do Daniel poderia imaginar. Ele não gostava de não impor medo, pois sempre fizera isso e estava acostumado demais com o poder para estar em um lugar onde era somente um intruso desagradável e insignificante.
Além dos seres que ali se encontravam, Daniel reparou no local em si. Primeiramente, os campos se estendiam até o horizonte, e ele não fazia a menor ideia de onde acabavam ou se sequer acabavam. Entretanto, ele reparou que a maior parte, indo pela sua esquerda e para frente, havia várias almas em fogueiras e várias punições da Santa Inquisição que ele preferia nem descrever, que gritavam, mas não pareciam rebeldes e também não possuíam a escolta de nenhum guarda ou ceifador. Logo ele deduziam que aquelas eram as almas mortais, dos seres humanos. Eram pequenos demais para receber atenção - mesmo estando em grande número, em imensa maioria - portanto somente sofriam sozinhos para sempre. A outra parte menor era ocupada pelo que ele já vira. Ao longe ele via cenas famosas, como Sísifo carregando sua pedra para o topo de uma colina e em seguida a pedra caía novamente, e também alguém que deveria ser Prometeu, amarrado em um tronco, com a barriga rasgada comida pelos corvos, por ter dado o fogo à humanidade. Isso o fez perceber o quanto os contos apresentados a eles por Quíron eram superficiais, pois aquelas punições que ele conhecia eram de longe as mais brandas que ele via no local.
A primeira coisa horrível que ele notou, foi que algumas almas, sentadas em bancos de arame farpado, colocavam o dedo em um copo, depois tiravam e ficavam imóveis por alguns segundos, então começavam a chorar e gritar, e talvez ficassem assim por horas, até estarem sem forças, para novamente recomeçar o ritual. Depois de um tempo olhando e pensando nisso, Daniel deduziu que nos copos havia água do rio Lete, e todas aquelas almas estavam tocando a água para perder a memória, e então de alguma forma elas assistiam um filme mentalmente que mostrava toda a dor e sofrimento delas, até se esgotarem de angústia, para então esquecer tudo de novo e sofrer novamente. Aquele era o pior castigo que Daniel podia imaginar e isso fez o seu coração ficar mais pesado que chumbo. Além disso, ele via algumas almas sendo queimadas em fogo grego ao mesmo tempo que era apagadas, mas de alguma forma aquilo doía absurdamente, e outras coisas que ele novamente preferia não comentar.
O garoto pensou que qualquer ser forte o suficiente para não morrer ali, ao passar uma estada mediana, voltaria para o mundo mortal como o melhor ser do mundo, ou talvez fosse só a sua impressão. As almas mortais eram muito primitivas, não conseguiam se manter puras por muito tempo, talvez nem presenciando aquilo.
Depois de algumas horas, ou talvez dias, já que ali a noção de tempo era diferente, Daniel encontrou um ceifador aparentemente mais jovem, que estava olhando para um alma caída, desmaiada. Aproveitando a oportunidade que parecia única, o garoto se aproximou e pigarreou. O ceifador olhou para ele, e Daniel quase deu um pulo. O garoto era certamente mais novo que ele. Talvez tivesse 16 anos, mas era esquelético e quase transparente, o que fazia o filho de Hades se perguntar se ele era mesmo um ceifador ou apenas mais uma das almas punidas. Ele pensou em se afastar e ir embora correndo. Ele precisava sair dali, se sentia derretendo, mas então o garoto ergueu a mão e disse:
-O que procuras, caro semideus?