Quando Hera me ofereceu o anel, senti um alívio dentro de mim. Fácil assim, uma deusa estava me dando sua proteção, só de usar um anel? Isso era conveniente. Mas assim que o peguei em meus dedos senti seu poder e, de alguma forma, uma sensação ruim veio acompanhando-o; a sensação de que eu segurava uma coleira ou uma tornozeleira eletrônica que eu nunca poderia retirar, e não um simples anel bonitinho.

- Eu... Agradeço. De verdade. Mas eu preciso de mais tempo pra descobrir quem sou eu de verdade antes de me decidir a ser o campeão de uma deusa importante como a senhorita - digo em tom conciliador, mas certo. Eu gostaria de ter uma relação amistosa com a deusa tanto quanto queria enfiar minha espada nela como fiz com o bebê. E apesar de estar morrendo de medo dela antes, depois de matar uma criança eu não conseguia sentir medo suficiente para não dizer-lhe não de novo - Agradeço de verdade. Mas vou deixar para aceitar esta honra no futuro, talvez.

Olho-a nos olhos com minha expressão cansada e aguardo o que teria a dizer. Mordisco mais um pedaço da lasanha, agora que estava mais calmo recuperando um pouco do apetite. Mas tudo ainda tinha gosto de couro, folhas verdes e morte.

Olho pra Hera enquantoa  deusa caminha elegantement eme direção à saída.

- O favor não poderia ser somente garantir que seu marido não me frite a qualquer momento depois que eu sair daqui, não é?

Dou um sorrisinho de conforto com a idéia de que aquilo talvez fosse o que eu merecia. Eu tinha acabado de matar um bebê. Acabado de acabar com a vida de uma mulher que sequer conhecia... Viver com medo era o mínimo que poderia esperar. Mas parando para pensar, morrer fritado por um raio parecia um tanto quanto misericordioso para um crime como o meu.

- De qualquer forma, obrigado pelo chá, pela lasanha... E pela companhia. Espero viver para ter o prazer de sua companhia me outro dia.

Olho para a lasanha que ela tinha dito não ser tão boa. Será por issoo que tinha gosto de merda? dou de ombros indiferente, e levanto-me para sair para a chuva, trazendo meu escdo comido pendurado no braço. Lá fora eu hesito um momento. Olhando para o chão, com medo de ver dois olhos gigantes e azuis me encarando das nuvens, eu sigo com a cabeça baixa na direção que tinha vindo quando cheguei na cidade, para o lado que Henry estava.

Suspiro olhando para o chão, entediado. Entediado? É, entediado, percebo com certa surpresa. Há menos de uma hora um desespero avassalador me engolia. Agora, eu sentia tédio. Será que tinha gastado todos os meus sentimentos naquela crise? Talvez fosse possível. A maioria das coisas tendem a acabar quando usadas demais, afinal...

Paro em algum lugar coberto para tentar alcançar na mochila o endereço que Henry tinha me dado, torcendo para que não estivesse destruído pela chuva. Esperava que a mochila do acampamento tivesse forro. Caso consiga lembrar do endereço ou achá-lo visível, eu começo a prestar atenção nas placas para ver se há algum padrão para a nomeclatura das ruas ou se há alguma avenida principal que chegasse até ali e eu pudesse seguir. Também tento lembrar o nome do hotel onde ele diria que ficaria.
Caso nada disso seja opção eu confiro se me restou algum dinheiro e caso sim, peço um taxi.

- Me leve para a melhor agência de modelos que houver aqui, por gentileza. A que faz revistas da Runway, ou coisa assim. Eu pago a mais pelo banco molhado.

E se até mesmo isso não for uma opção eu suspiro e começo a cantarolar "Lonely Day", do System of a Down, apenas pela graça aconchegante da melancolia.

Novamente, lembrei-me de Henry me chamando de caipira no Acampamento. Olhando aquele prédio enorme eu não pude deixar de me perguntar como raios um ser humano podia empilhar tantos cômodos umem cima do outro. Parecia a obra de um deus; uma montanha espelhada, crescendo como uma lâmina cravada no coração da cidade.

Quando entrei me impressionei também com a chiqueza de tudo ali. Se eu pudesse viver em um lugar como aquele, eu jamais ficaria no Acampamento, com aqueles beliches rangendo e colegas de quarto flatulando a noite inteira.

Ao chegar no quarto do filho de Afrodite tudo o que eu queria era deitar e dormir em um canto, talvez até em um tapete. Tomar um bom banho e dormir... E de preferência morrer dormindo.

- Eu vim de avião - respondo a Henry enquanto caminho como um zumbi na direção indicada por ele.

Entro, tiro a roupa e tomo um banho. Entro no chuveiro ou na banheira, e deixo a água lavar mais do que a sujeira de mim. Encosto a cabeça, inspirando várias vezes seguidas, com a cabeça um tanto quanto enevoada. Não sabia o que sentir neste momento. Achava que ficaria mais feliz ou aliviado em ver Henry, mas até seu rostinho de anjo me parecia menos vivo agora. Quando o olhei, me perguntei de que forma ele morreria um dia. Seria assassinado por um monstro? Por um aliado? Morreria velho e bonito em sua cama luxuosa, daqui a setenta anos?

Lavo bem meu rosto e meu cabelo e depois do banho paro para me encarar um momento no espelho, estranhando o rosto familiar me olhando de volta. Esperava que de alguma forma fosse ser outra pessoa, mas... Ainda tinha o mesmo rosto. Talvez um pouco menos vivo. E com mais olheiras, mas ainda o mesmo Owen.

Owen!

Fecho os olhos e levo uma mão ao rosto, esfregando entre os olhos. Não pense nesse nome, me digo com firmeza e cansaço, novamente entediado pela chatisse de tudo aquilo.

Visto o roupão que achar por ali. Vejo se há alguma escova de dentes nova nas gavetas e escovo meus dentinhos, agradecido, desesperado por tirar aquele gosto de couro velho da boca que tinha ficado depois da lasanha, então saio do banheiro para encontrar novamente o filho de Afrodite.

- e aí. Como foi seu... Sua coisa de modelo?

Por mais glamurosamente tediosos que parecessem ser esses compromissos de gente bonita e elegante, eu estava louco para ocupar minha mente com alguma coisa. Então olho ao redor em busca de algo pra comer, porque o costo terrível ainda incomodava em minha boca.

Ouvir o Henry cahamndo Hera de vaca me arrancou um sorriso.

- É, mais ou menos. De certa forma, foi a va- digo, não tem problema chamarmos ela assim? Não vamos, sei lá, pegar fogo do nada?

Dou um sorriso torto enquanto avalio as roupas que ele havia providenciado para mim. Visto a calça e a camisa preta, jogando a jaqueta amarela por cima e indo até um espelho, refletindo sobre como responder às perguntas dele. Deveria mentir? Deveria dizer a verdade? Desde o início eu sentia como se ele atraísse meus pensamentos como um imã mágico, como se um gás da verdade exalasse de seus poros.

Pego a bússola dada por Hera no bolso do roupão e mostro a ele. Que trabalheira. Daria trabalho mentir, daria trabalho falar a verdade... Então escolho o caminho que parecia mais simples.

- Ela me pediu para matar um bebê. Um bastardo filho de Zeus. Acho que eu podia ter recusado, claro, mas... Ela me trouxe até aqui e disse que eu lhe devia algo. Senti que não seria saudável dizer não.

Olho pra ele, desejando poder ler seus pensamentos como sentia que ele pdia fazer comigo.

- Eu o matei. Ele se chamava Owen. Não foi uma coisa legal de se fazer, não é?

Volto a me fitar no espelho, vendo como estava com aquela jaqueta amarela. Jamais tinha usado nada tão estravagante em minha vida, e a visão era engraçada. MAs fiquei surpreso de ver no espelho que estava chorando. Não sabia dizer quando tinha começado, então fiquei ali um tempo observando-me no espelho. O que se passa na sua cabeça, hein?