O Cheiro do Aço - Treino I
Me adaptar a nova vida não estava sendo exatamente uma experiência muito empolgante, especialmente porque o estilo espartano de militarismo romano não era exatamente muito agradável, mas não havia muito o que fazer, aquele era meu novo o orfanato.
Naquela manhã eu fora ordenado a dar suporte nas forjas do acampamento, já que, aparentemente, eu era filho de alguma entidade divina que era patrono da metalurgia...Não entendi bem essa parte, mas parecia que era simplesmente uma tarefa do meu novo orfanato, então, apenas parte da rotina comum da qual eu teria de viver.
Ao chegar próximo ao local eu já podia sentir o cheiro no ar. Era uma mistura de vapor e enxofre que me fez, estranhamente, sorrir, quase como se estivesse reencontrando um ente querido que há muito não via.
Estranho...Apesar do sentimento nostálgico, ao entrar no lugar, podia-se ver que o clima era de total confusão. Adolescentes excessivamente corpulentos e musculosos estavam separados por bancadas, onde cada um trabalhava em seu próprio ritmo, as marteladas sendo dadas sem respeitar um compasso, embora, para meus ouvidos, parecesse uma orquestra perfeita e harmoniosa.
- Ei. - Disse uma voz profunda e grave atrás de mim. - Perto de quem come e longe de quem trabalha. - Rosnou ao passado por mim com um barril lotado de lâminas que ele levou para um canto. Bufou ao olhar para elas, quase como se tivesse compaixão dos utensílios que, ao meu ver, pareciam bem deterioradas.
Enquanto ele coçava a barba por fazer, eu pude notar seus traços. Maior do que todos os dali, o garoto rude tinha músculos despontando por todos os lados da camisa de flanela suja de fuligem e carvão, queimada aqui e ali. Pude perceber quando passou por mim que seu cheiro era forte, quase insuportável, embora se eu ficasse muito tempo naquela estufa também não pudesse garantir que continuaria cheirando bem.
- Desculpe... - Balbuciei e ele balançou a mão, como se não tivesse importância. - ...Eu acabei de chegar no acampamento e...Me mandaram pra ajudar...Há algo que possa fazer? - Perguntei, mas ele não respondeu, sua cabeça pendia de um lado para outro, incapaz de escolher se cuidava das lâminas que havia trago ou do projeto em sua bancada, que eu juro que não sabia do que se tratava.
Ele rugiu e se agarrou aos cabelos lisos e longos que caiam por seus ombros, talvez na falta de tempo de cuidar deles. Eu dei um pulo pra trás e estava pronto para deixá-lo quando ele apontou pra mim.
- Você aí. Quer ajudar né? - Parecia mais um rosnado. - Então de um jeito nisso. - E apontou para a pilha de lâminas que havia trago, voltando sua atenção para a bancada e começando a trabalhar.
Ele nem me esperou concordar, discordar ou perguntar o que eu devia fazer e, sinceramente, não estava muito com vontade para questioná-lo. Ele era um homem louco com um pesado martelo nas mãos. Não me parece uma boa idéia incomodá-lo.
Me resignei a dirigir-me ao meu cantinho na bancada do homem, que parecia ser a maior das demais. Um sem número de ferramentas estavam ordenadamente organizados e pendurados na parede com milímetros de precisão, quase como se eu tivesse toque.
As lâminas eram espadas usadas que deviam ter sido entregues para reparos depois de algum exercício de guerra esquisito que os semideuses faziam ocasionalmente e, ao ver o estado delas, devia ter sido brutal.
Estavam desalinhadas, desafiadas e algumas delas apresentavam rachaduras preocupantes. Seria um processo bem demorado e eu precisaria de algumas ferramentas que teria de pegar do grandalhão, o que dada sua organização eu duvidava que ele fosse permitir.
Claro que eu não fazia idéia de onde vinha todo aquele raciocínio prático de como trabalhar, mas dei de ombros para isso. Talvez fosse isso que significava ser filho de Vulcano.
Separei em três categorias: As fáceis de resolver, as que demorariam um pouco mais e as que eu tinha quase certeza que não tinham solução.
As fáceis de resolver, eram espadas que estavam com seu fio comprometido ou sujas, com o couro de seus cabos rasgada ou com suas pontas sem a agudez correta (Sei lá que isso significa);
As que demorariam um pouco, estavam desalinhadas e empenhadas, quase como se tivessem sofrido o impacto de um machado ou de um martelo, o que significava que eu teria que colocá-las de volta no fogo.
Olhando ao redor, percebi que o grandalhão tinha uma fornalha auxiliar, que provavelmente seria o suficiente para que eu trabalhasse naquele momento.
Já a última pilha...Bom...Não sei...Acho que não tinha jeito...
- Tudo que você usar, acho bom colocar exatamente no mesmo lugar de antes. - Rosnou, de costas pra mim, seus dedos grandes operando algum tipo de dispositivo de solda eletrônica.
Peguei uma flanela e comecei a limpar as lâminas que estavam sujas, polindo-as até que visse meu reflexo no aço prateado. Não parcial feitas de materiais muito duráveis, não como as que eu via alguns semideuses carregando, mas, apesar do pouco valor, eram belas e bem trabalhadas. Dava pra ver a quantidade de marteladas empregadas até que o aço se dobrasse e finalmente obedecesse a vontade de seu forjador. O odor delas me era característico, quase como se já o tivesse sentido muitas e muitas vezes.
Nas que o couro havia rasgado, peguei silenciosamente as tiras de couro necessária nos estoques do meu então "patrão" e envolvi o cabo com certo cuidado, reconhecendo novamente que aquelas espadas foram fabricadas para caberem em diferentes tipos de tamanhos de mãos, quase como se a pessoa tivesse tirado a medida um por um, o que me parecia estranho para espadas que eram de uso geral.
As que precisavam ser afiadas eram um outro detalhe. Havia uma pedra que eu não reconhecia entre as muitas ferramentas do barbudo, mas que ao tocá-lá, a vibração dela me trazia uma sensação muito estranha.
Acho que fiquei tempo demais olhando pra ela, porque percebi que ele havia parado o que restava fazendo só pra me encarar com uma sobrancelha levantada em sinal de curiosidade.
- O que pretende fazer com ela? - Inquiriu, rosnando como de costume, embora dessa vez não parecesse estar zangado.
- Er...Eu ia afiar as lâminas. - Balbuciei, diminuto, já imaginando a bronca que ia levar, mas, para minha surpresa, ele deu de ombros e voltou a se concentrar em seu projeto.
Interpretei aquilo como algo positivo e comecei a trabalhar.
Deslizei a pedra sobre os metais danificados pelos muitos embates, sentindo-o vibrar em minha mão e ganhar uma coloração estranha. Percebi que era muito mais fácil com ela, enquanto o chão se iluminava cada vez que eu produzia as faíscas resultantes do atrito.
Aproveitei para alinhar o centro das pontas que estavam fora por alguns milímetros, deixando o ângulo no ponto certo.
Quando finalmente terminei a pilha das fáceis, passei para a pilha das complicadas. Não sabia se tinha experiência o suficiente para trabalhar com o forno, mas eu sabia que não podia deixar o trabalho pela metade ou o grandalhão me mataria.
Deixei as espadas próximas ao fogo, enquantô dava uma volta pela forja, vendo como os demais faziam, tentando absorver um pouco de como eles pegavam o martelo e dobravam o metal ao seu bél prazer.
Quando me senti satisfeito com o pouco que consegui absorver, voltei para a bancada do grandalhão, que aparentemente estava distraído demais para perceber que eu havia deixado meu posto por um segundo.
Pus a primeira lâmina nas chamas até que ela ficasse incandescente e então martelei. Martelei como não imaginei que era capaz, sentindo a nota aguda ecoar pelos mrusso ouvidos e o sorriso brotar quase que imediatamente em meu rosto.
Minha respiração ia se unindo ao vapor, meus gemidos de esforço cantavam junto com o tilintar do metal e, antes que eu percebesse havia se passado mais tempo do que havia planejado para a executar a executar tarefa.
Estava suado, com um cheiro horrível, mas com uma sensação incrível de dever cumprido, quase como se tivesse saciado uma sede que eu nunca havia percebido que existia.
Quando olhei para as duas pilhas prontas, vi que eram espadas lindas, bem feitas e muito provavelmente amadas. Quem as forjara era alguém brilhante e amoroso, com um coração gentil e cheio de paixão pelo que construía, era possível sentir cada peso do martelo em suas criações.
Mas algo estava me preocupando. A última pilha.
Pelo que havia percebido, elas não pareciam ter concerto. Talvez pudessem ser reaproveitadas como material, mas não me parecia ser o certo.
- E então...Terminou? - Rosnou o outro, aparentemente não havia acabado seu projeto. E, julgando pelas peças espalhadas na mesa, nem mesmo ele será bianual quando acabaria, se é que sabia o que é paixão ativa fazendo.
- Não sei o que fazer com essas... - Falei, minha expressão triste, acho que estava com os olhos marejados.
- Porque não derretemos elas? - Inquiriu e novamente eu vi aquela interrogação por traz da interrogação.
- Pensei nisso...Mas... - Eu não consegui terminar a frase, nem elaborar um pensamento que julgasse ser coeso com o que estava fazendo. A praticidade apontava para que simplesmente a víssemos como possíveis matérias primas para outras, mas...mas...
- Não acha justo, certo? - Ele disse e, quando olhei para seu rosto, estava iluminado com um sorriso discreto. Parecia que ele entendia o que eu estava sentindo. - Vamos...Vou te levar a um lugar...
Ele amarrou um feixe com as espadas que não tinham concerto e seguiu para fora da forja, rumando para o leste do acampamento, até estarmos em uma região deserta.
Eram campos verdejantes, que ondulavam como se fossem dunas em meio ao deserto, subindo e descendo sem fazerem cerimônias. Quando atravessamos uma delas, o que vi foi um monte de cabos de espadas, lancas e outras armas que não conhecia despontando em uma espécie de pequeno vale, forrado com flores rasteiras.
O grandalhão desceu até o vale e me entregou o feixe.
- Foi você que decidiu que era o fim delas, agora as sepulte. - Rosnou, enquanto me indicava um espaço vago em meio ao que parecia ser seus túmulos.
Achei justo e, por isso, não hesitei em respeitar o alinhamento já pre-proposto pela configuração do cemitério de espadas, onde elas finalmente encontravam seu descanso.
- Apesar de todos discordarem, as armas possuem uma história. Todas elas enfrentaram batalhas com seus donos e encontraram seu fim quando finalmente sua utilidade teve fim, não muito diferente dos humanos. Não vemos humanos sendo reaproveitados por outros humanos. Porque devíamos fazer isso com nossos companheiros de armas ? - Foi a primeira vez que percebi que sua voz rosnada era algo normal e, mesmo naquele momento, era possível ver a gentileza que residia em seu coração, mesmo que fosse reservada apenas para as armas que fabricava.
Ele fez o que parecia ser uma prece a Vulcano e eu acompanhei ele de cabeça baixa e olhos fechados, o que só serviu pra me assustar quando ele me enlaçou em baixo de seu sovaco fedido e cheirou meu pescoço.
- Esse aí é um belo cheiro de aço que você tem, irmão. - Rosnou gargalhando como se estivesse tomado uma garrafa de rum. - Esta decidido. Eu, Faustus Ironsmell vou te fazer um ferreiro descente.