Legit praguejou e xingou quando queimou o braço pela quinta vez. A décima bolha se formou em seu antebraço quando um respingo de lava passou perto demais de sua pele, inflamando-a com aquele calor infernal. Legit estava, inclusive, lavando os pratos do Acampamento, uma tarefa que a cada semana era passada a um chalé por vez. Estava calçando grossas luvas de couro de telquine nas mãos para não queimá-las, mas vez ou outra a lava borbulhava espalhando respingos escarlates ao redor. Ao seu lado, Shouto tentava esconder as lágrimas nos olhos, e Legit não sabia se eram de dor das queimaduras nas mãos ou de raiva por ter de fazer aquele trabalho. Conhecendo o irmão, provavelmente a segunda opção.
As harpias andavam de um lado para o outro vigiando a limpeza. Espíritos do vento invisíveis passavam carregando os pratos limpos para serem guardados, e aos poucos as pilhas de talheres sujos foram diminuindo até que faltava apenas uma dúzia de pratos.
- … mas eu soube que ocorreu de novo, em Roma! Argh, tinha de ser! Naquele lugar nojento! Você jamais ouviria falar de gente assim na Grécia. Jamais teríamos aceitado esta invasão, esta profanação em nossas terras! Mas os Romanos? Há! Eles adoram trair suas raízes! Adoram aderir às modas. Nojentos, eu digo!
As harpias conversavam aos sussurros, mas não eram nada discretas. Suas vozes estridentes chegavam a Legit com facilidade, e mesmo que não quisesse o garoto ouvia cada palavra da fofoca quentíssima das "aves".
- É, e eu digo mais… Minha prima de Ottawadisse que já viu um por lá, também! Pode imaginar? Aqui do lado!Ela achou que era uma de nós… Viu o brilho das asas e pensou: Nossa, que shampoo ela usa???? Mas quando foi perguntar, há! Adivinha? Não era uma harpia! Era uma mulher! Uma mulher com asas enormes! Onde já se viu? Ela achou que se tratava da Guarda de Zeus, mas não era Bia… Ela mal teve tempo de correr antes de ser atacada. Até hoje não conseguiu se recuperar totalmente. É muita ousadia… Invadir nosso território, infectar os mortais com essas idéias tolas de salvação… Salvação de que, deles mesmos!? não há nada demais nesse tal de De-
- Shhhh!!! Fale baixo, sua galinha velha! Quer morrer? Se nos escutarem… Quem sabe quem pode nos ouvir?[/i]
As harpias se agitaram e olharam de soslaio para Legit, que abaixou a cabeça de volta pros pratos em tempo de ver uma bolha estourar e respingar em seu braço outra vez, fazendo-o saltar de dor e susto.
Quando a tarefa finalmente terminou ele e seus irmãos saíram para a noite fria. Já deviam ser umas dez da noite, e nenhum campista estava à vista. Certamente já estavam em seus chalés, aninhados em suas camas, prontos para descansar e aproveitar do frescor da noite para preencher as forças gastas durante o dia. Mas diferentemente da maioria, o filho de Hades estava cheio de energia e disposição, e dormir não era uma opção naquele momento. O som do isqueiro denunciou que Shouto estava acendendo o tão esperado cigarrinho da noite, parecendo satisfeito apesar dos braços cheios de bolhas. Legit contou ao menos o dobro de feridas no braço do irmão, e não pode deixar de rir de sua lerdeza. Shouto olhou torto pra ele, mas um sorriso também enfeitava o canto de sua boca. O garoto deu de ombros e se mandou caminhando em direção aos fundos da cozinha, onde Legit tinha certeza de que ele aplicaria sua vingança nas Harpias roubando toda a comida que conseguisse (provavelmente bananas, café e torradas, o que parecia ser a única coisa que o guri comia).
Sozinho, Legito encarou o céu noturno e estrelado. O frio do inverno havia passado e aos poucos o calor da primavera preenchia os dias no Acampamento. O cheiro dos morangos na plantação chegavam até ele com o aroma agradável da fertilidade, e o som do mar ao longe ressoava pelos campos silenciosos. Tudo parecia em paz. Parecia. Este o problema. O garoto sabia, de alguma forma, que algo estava acontecendo, ou pra acontecer. Depois de anos, ele já tinha adquirido este instinto, este sexto sentido para problemas. Depois de ouvir a conversa das Harpias então, só estava mais certo de que estes dias de paz estavam contados, ao menos para alguns deles. Ao menos por aqueles que fossem escolhidos pelo destino para participar da próxima trama dos deuses.
Quase que ouvindo seus pensamentos, ou quase que como um desafio, algo brilhou na floresta. Uma luz bruxuleante e amarelada em meio às árvores. O garoto a encarou por um momento, antes de decidir ir em sua direção. Shouto já não estava mais à vista, e os outros filhos de Hades já haviam se dispersado pela noite como era comum então, solitariamente, silenciosamente, Legit caminhou em direção à luz.
Assim que adentrou os bosques, percebeu que deveria dar meia volta e voltar pro chalé. Mas não o fez. Como um gato disposto a morrer para saciar sua curiosidade, passo a passo Legit adentrou a floresta em direção à luz verde e sobrenatural. Ele sabia que algo de errado havia ali, pois a luz parecia contornar as árvores e ir mais longe do que deveria naquela floresta densa e escura. A sombra e os troncos das árvores deveriam extinguir qualquer luz em dez metros, mas ele caminhou vinte, trinta, cinquenta metros sem encontrar sua fonte. Era como se a luz quisesse ser vista, quisesse ser encontrada… como um farol, ou um chamariz. E assim era.
- Só… Um? Tá de sacanagem comigo? Só um moleque desnutrido, é isso?
Um homem estava sentado em um tronco de frente para uma fogueira. O brilho amarelado que se espalhava pela floresta vinha do reflexo das chamas em suas asas douradas, que pareciam tornar a luz dez vezes mais forte. Legit ficou quase ofendido, já que apesar de bem definido, ele não era exatamente um homem grande. Parecia jovem, não muito mais velho do que ele, mas seu olhar manteve o garoto no lugar da mesma forma que correntes o teriam mantido. Quem era aquele cara? Que ousadia, o atrair até ali só para falar aquilo… Muita ousadia. Inconscientemente Legit inflou o peito e ajeitou a postura, tentando parecer maior ou ao menos mais respeitável, mas isso pareceu não impressionar o cara, que continuou cutucando as brasas para aumentar o fogo, e ele utilizava as próprias mãos para isso. Um javali inteiro estava pendurado em um galho, assando lentamente em cima das chamas.
Eu também consigo caçar um javali desses. pensou Legit, sem saber exatamente o porque. E também consigo brilhar assim, se quiser! Eu acho….
Se alguma forma, o homem o irritava. E emanava uma aura pesada, densa, radiante que não deixava dúvida alguma de que era um deus. O homem arrancou uma perna do javali sem dificuldades e olhou-a criticamente antes de arrancar um pedaço suculento em uma mordida enorme. Ele mastigou olhando para Legit, que sem pensar se aproximou e arrancou outra perna e começou a comer. De repente, o encontro aleatório havia se tornado uma competição para ver quem devoraria sua perna primeiro. E o homem parecia em vantagem.
As harpias andavam de um lado para o outro vigiando a limpeza. Espíritos do vento invisíveis passavam carregando os pratos limpos para serem guardados, e aos poucos as pilhas de talheres sujos foram diminuindo até que faltava apenas uma dúzia de pratos.
- … mas eu soube que ocorreu de novo, em Roma! Argh, tinha de ser! Naquele lugar nojento! Você jamais ouviria falar de gente assim na Grécia. Jamais teríamos aceitado esta invasão, esta profanação em nossas terras! Mas os Romanos? Há! Eles adoram trair suas raízes! Adoram aderir às modas. Nojentos, eu digo!
As harpias conversavam aos sussurros, mas não eram nada discretas. Suas vozes estridentes chegavam a Legit com facilidade, e mesmo que não quisesse o garoto ouvia cada palavra da fofoca quentíssima das "aves".
- É, e eu digo mais… Minha prima de Ottawadisse que já viu um por lá, também! Pode imaginar? Aqui do lado!Ela achou que era uma de nós… Viu o brilho das asas e pensou: Nossa, que shampoo ela usa???? Mas quando foi perguntar, há! Adivinha? Não era uma harpia! Era uma mulher! Uma mulher com asas enormes! Onde já se viu? Ela achou que se tratava da Guarda de Zeus, mas não era Bia… Ela mal teve tempo de correr antes de ser atacada. Até hoje não conseguiu se recuperar totalmente. É muita ousadia… Invadir nosso território, infectar os mortais com essas idéias tolas de salvação… Salvação de que, deles mesmos!? não há nada demais nesse tal de De-
- Shhhh!!! Fale baixo, sua galinha velha! Quer morrer? Se nos escutarem… Quem sabe quem pode nos ouvir?[/i]
As harpias se agitaram e olharam de soslaio para Legit, que abaixou a cabeça de volta pros pratos em tempo de ver uma bolha estourar e respingar em seu braço outra vez, fazendo-o saltar de dor e susto.
Quando a tarefa finalmente terminou ele e seus irmãos saíram para a noite fria. Já deviam ser umas dez da noite, e nenhum campista estava à vista. Certamente já estavam em seus chalés, aninhados em suas camas, prontos para descansar e aproveitar do frescor da noite para preencher as forças gastas durante o dia. Mas diferentemente da maioria, o filho de Hades estava cheio de energia e disposição, e dormir não era uma opção naquele momento. O som do isqueiro denunciou que Shouto estava acendendo o tão esperado cigarrinho da noite, parecendo satisfeito apesar dos braços cheios de bolhas. Legit contou ao menos o dobro de feridas no braço do irmão, e não pode deixar de rir de sua lerdeza. Shouto olhou torto pra ele, mas um sorriso também enfeitava o canto de sua boca. O garoto deu de ombros e se mandou caminhando em direção aos fundos da cozinha, onde Legit tinha certeza de que ele aplicaria sua vingança nas Harpias roubando toda a comida que conseguisse (provavelmente bananas, café e torradas, o que parecia ser a única coisa que o guri comia).
Sozinho, Legito encarou o céu noturno e estrelado. O frio do inverno havia passado e aos poucos o calor da primavera preenchia os dias no Acampamento. O cheiro dos morangos na plantação chegavam até ele com o aroma agradável da fertilidade, e o som do mar ao longe ressoava pelos campos silenciosos. Tudo parecia em paz. Parecia. Este o problema. O garoto sabia, de alguma forma, que algo estava acontecendo, ou pra acontecer. Depois de anos, ele já tinha adquirido este instinto, este sexto sentido para problemas. Depois de ouvir a conversa das Harpias então, só estava mais certo de que estes dias de paz estavam contados, ao menos para alguns deles. Ao menos por aqueles que fossem escolhidos pelo destino para participar da próxima trama dos deuses.
Quase que ouvindo seus pensamentos, ou quase que como um desafio, algo brilhou na floresta. Uma luz bruxuleante e amarelada em meio às árvores. O garoto a encarou por um momento, antes de decidir ir em sua direção. Shouto já não estava mais à vista, e os outros filhos de Hades já haviam se dispersado pela noite como era comum então, solitariamente, silenciosamente, Legit caminhou em direção à luz.
Assim que adentrou os bosques, percebeu que deveria dar meia volta e voltar pro chalé. Mas não o fez. Como um gato disposto a morrer para saciar sua curiosidade, passo a passo Legit adentrou a floresta em direção à luz verde e sobrenatural. Ele sabia que algo de errado havia ali, pois a luz parecia contornar as árvores e ir mais longe do que deveria naquela floresta densa e escura. A sombra e os troncos das árvores deveriam extinguir qualquer luz em dez metros, mas ele caminhou vinte, trinta, cinquenta metros sem encontrar sua fonte. Era como se a luz quisesse ser vista, quisesse ser encontrada… como um farol, ou um chamariz. E assim era.
- Só… Um? Tá de sacanagem comigo? Só um moleque desnutrido, é isso?
Um homem estava sentado em um tronco de frente para uma fogueira. O brilho amarelado que se espalhava pela floresta vinha do reflexo das chamas em suas asas douradas, que pareciam tornar a luz dez vezes mais forte. Legit ficou quase ofendido, já que apesar de bem definido, ele não era exatamente um homem grande. Parecia jovem, não muito mais velho do que ele, mas seu olhar manteve o garoto no lugar da mesma forma que correntes o teriam mantido. Quem era aquele cara? Que ousadia, o atrair até ali só para falar aquilo… Muita ousadia. Inconscientemente Legit inflou o peito e ajeitou a postura, tentando parecer maior ou ao menos mais respeitável, mas isso pareceu não impressionar o cara, que continuou cutucando as brasas para aumentar o fogo, e ele utilizava as próprias mãos para isso. Um javali inteiro estava pendurado em um galho, assando lentamente em cima das chamas.
Eu também consigo caçar um javali desses. pensou Legit, sem saber exatamente o porque. E também consigo brilhar assim, se quiser! Eu acho….
Se alguma forma, o homem o irritava. E emanava uma aura pesada, densa, radiante que não deixava dúvida alguma de que era um deus. O homem arrancou uma perna do javali sem dificuldades e olhou-a criticamente antes de arrancar um pedaço suculento em uma mordida enorme. Ele mastigou olhando para Legit, que sem pensar se aproximou e arrancou outra perna e começou a comer. De repente, o encontro aleatório havia se tornado uma competição para ver quem devoraria sua perna primeiro. E o homem parecia em vantagem.