Os fantasmas não se alteram enquanto Cris vaga entre eles. O garoto sente-se frio por dentro a cada vez que uma alma atravessava seu corpo sem querer, como se tivessem jogado um balde de água gelada naquela parte de seu corpo. O garoto vai furando fila como crianças num refeitório no recreio, e aos poucos começa a atravessar aquele enorme salão. O som fica mais intenso. Seus ossos vibram no ritmo da melodia e, aos poucos, ele percebe que seu corpo se movia sozinho, pulando na mesma frequência que os fantasmas, que as outras almas, que a batida da música.
Enquanto se aproximava ele conseguia discernir mais sons, mais tons escondidos sob os primeiros. Chegou a pensar ter ouvido vozes... Até que, de fato, percebeu que as ouvia. Aproximou-se o suficiente pra diferenciar um palco à frente. Havia quatro coisas, quatro criaturas sobre uma plataforma de pedra ao fim de uma escada. O garoto observa com atenção. Havia algo como o tronco de uma árvore mais atrás e também notou que a fileira de mortos subia, em fila indiana, e desaparecia de alguma forma um pouco à frente da árvore, depois das figuras cantantes.
Ele olha com mais atenção, aproximando-se lentamente pela multidão semitransparente de mortos. Seus pés começam a pisar em grama, ele percebe. Grama negra, crescendo sobre terra negra. As quatro formas que estavam mais à frente lá em cima estavam mais visíveis. Pareciam... Pessoas? Não, não pessoas.
- Spoiler:
As figuras estão com as bocas escancaradas, e o ar ao redor delas chega a tremer. Da chama em seus crânios vazios escapam os feixes e os flashs de luz que iluminavam o cenário. Suas vozes ecoavam em mil tons, criando o ritmo doentiamente contagiante que parecia ser ouvido pela própria alma do garoto. De alguma forma, ele se sentiu atraído até elas. O que diziam? Que palavras saiam de suas bocas, o que seus sussurros prometiam? O que havia adiante delas?
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Nada bonito, não é mesmo? A voz falou tão próxima de Cris que ele teve vontade de saltar, mas, não conseguiu. Virou-se lentamente para dar de cara com um cara alto em um traje completamente negro. Usava um capuz que cobria-lhe a cabeça, deixando apenas os contornos de seu rosto visíveis sob a luz das almas e das chamas espectrais naquelas coisas lá em cima.
- Spoiler:
[Considere o traje negro sob a roupa]
O homem encara Cris. O garoto fita os olhos castanhos do deus, ficou paralisado. Ele sabia que não era uma pessoa normal diante de sí. A presença... Era diferente. Tinha vindo do nada, e ele percebeu que toas as almas ao redor tinham parado. Simplesmente parado... O som parou, a luz parou. Ele conseguia ver os lasers em pleno ar, cruzando as almas como se fossem névoa. A única coisa destoando era o pirulito na boca do homem.
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Um lugar atípico para nos conhecermos, Cris Rock. Não costumo ir a raves, mas esta está demasiado animada.
O tom do homem é o mesmo durante toda a frase; calmo, suave, de uma frieza sutil como a neve, como uma sombra, como a morte. Morte. Sim, morte. A lamina de uma foice brilhava por trás da cabeça do homem, certamente segurada por suas mãos às costas. Ele sabia que aquele homem de feições angelicais diante dele era Tânatos, o deus da própria Morte.
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Não tema, garoto. Não vejo a sombra de Mim sobre você ainda. Estou aqui apenas para... Instruir - Ele olha para o palco adiante, sobre a plataforma de terra no fim da escadaria de terra, cobertos de grama negra -
As coisas diante de você são as alças do Pote das Almas... São a canção desta peça maldita e a forma que age em prol de seus detentores que, cá para nós, foram muitos através da história. Esta coisa invoca estas aberrações todas as vezes que é usada, e atrai todas as almas vagantes que ouvem seu canto. O pote as atrai com o cheiro, com a aparência, com a energia dos Elíseos, com a promessa de um paraíso, mas encontram apenas um recipiente frio para habitar como picles em conserva. Você entende, garoto? Entende o desequilíbrio que este artefato causa aos nossos mundos? Ah... - Ele passa a mão na cabeça, revelando um chifre negro solitário escondido entre seus dreads, e aparenta estar levemente cansado -
Sabe. O pote... já esteve em minhas mãos algumas vezes mas sempre foi roubado. Ele tem uma tendencia natural a, bem, ser furtado de seus donos pelos novos. Então desta vez decidi fazer as coisas do jeito dele. E, quem melhor do que um filho do deus dos ladrões? É o que espero... Então, garoto. Se estiver disposto a ajudar, posso recompensá-lo devidamente, justamente, se conseguir desancorar o pote e entregá-lo a mim. Esta coisa que o está utilizando... Não subestime suas capacidades por sua aparência. Sua consciência é plena, e vasta... E sorrateira. Tristes, tristes almas... Já as vi serem comidas, mas... Adubo? Triste. O deus olha pra Cris em espera a uma resposta à proposta. Mas que tipo de recompensa traria um deus como Tânatos, afinal?