O guri sabiamente guarda seu novo pertence. O pote desaparece no ar, coberto pela capa do garoto, e neste momento a arvore arregala seu olho ainda mais. Uma boca enorme se abre no meio do tronco, e emite um grito profundo e horrendo, como mil árvores se quebrando ao meio.

Os esqueletos com chamas na cabeça começam a correr em direção a Cris. O garoo voa pra longe da árvore de imediato mas a lamina longa de um dos esqueletos se ergue e alcança sua perna, atingindo-o e desequilibrando o garoto.

Cris começa a perder altitude. Não conseguia sustentar seu peso sob a perna ferida, e a asinha fica batendo descontroladamente. O garoto voa em direção à multidão de almas com quatro esqueletos em chamas atrás de si, cada um com sua espada erguida.

Perder altitude era realmente preocupante, eu estava prestes a cair no meio de centenas de almas sedentas pelo pote que agora eu tinha em mãos. Eu precisava entregar o pote para Thânatos...como atrair a morte? Enquanto rumava direto ao solo, abraçando o pote com o braço esquerdo, saquei minha adaga com a mão direita.

|Ainda não vejo minha sombra sob você|, então essa seria a forma de trazer Thânatos até o local. Em um movimento rápido, penetrei a adaga em minha virilha, tomando o cuidado pra não atingir meus testículos, mas sim a artéria femural. Enquanto o sangue espirrava do ferimento, tentei controlar minha queda para cair sem muitos danos, principalmente ao pote. Saquei a lanterna do bolso, a direcionando em todas as direções possíveis, tentando afastar as criaturas enquanto a morte vinha ao meu encontro.

O filho de Mercúrio puxa sua adaga. Não para lutar contra os esqueletos que o perseguiam, porém. Com um movimento rápido o garoto atinge um ponto conhecido em sua perna, normalmente um ponto que evita-se deixar atingir mas o guri o faz de propósito. Sangue escorre profusamente de um corte relativamente curto. Cris trinca os dentes graças à dor na perna já fodida.

O guri cai no chão rolando sem conseguir sustentar o peso do corpo. Ele começa a sentir frio. Frio, sim. Cris voa mais alguns metros antes de cair novamente, sua visão falhando. Atrás dele, a multidão de almas se dispensava diante dos esqueletos que seguiam. A criatura que vinha mais à frente ergue a espada até sua cabeça. As chamas vermelhas envolvem a lamina deixando-a ardente. O esqueleto se aproxima, mas estava cada vez mais lento. Seu golpe vem contra o pescoço do garoto, mas nunca o atingiu. Pouco a pouco, o tempo voltou a parar. Cris sentia frio, tremendo como nunca.

Uma sombra recai sobre Cris. Thanatos o observa a um passo de distância.

- E então?

Tudo começou a ficar devagar e frio, como se o senhor D alterasse bruscamente a temperatura no acampamento, eu podia sentir minha energia se esvaindo conforme o sangue escorria da ferida; eu ia morrer, era um fato. Nem me movi perante o esqueleto, aguardei o golpe de cabeça erguida, mas não me atingiu, ao invés da espada fui atingido pelas palavras de uma voz familiar.

-- Está aqui. -- Falei tentando me manter, soltando o pote que eu abraçava com o braço esquerdo. -- é agora que você ceifa minha alma?

Tânatos ergue a mão recebendo o pote das mãos do garoto. O braço do guri cai sem forças após entregar a peça fria e vazia. O deus da Morte observa por um momento com um olhar triste o interior do pote, e então o guarda entre seu véu negro. Ele ergue a cabeça para Cris quando ouve a pergunta do garoto.

- Seria. Talvez seja. Isso... Depende de você. Afinal, eu te devo esta escolha, não é? Mas... Além da morte e da vida, posso oferecer também um intermediário entre ambos. Um trabalho que a maioria acharia um tanto enfadonho... Você sabe o que é um ceifador, garoto? - O deus se apoia na foice e se abaixa ao lado do garoto. Aos poucos, o tremor em seu corpo parecia ficar mais fraco.

-- Intermediário? -- Eu sabia que Thânatos tinha poder total diante daquela situação, eu só iria morrer se ele decidisse que eu iria, fora isso não. -- O que é um ceifador?

O deus pensa por um momento antes de responder.

- Ceifadores são como filhos para mim. São deuses que, como eu, agem ao redor do mundo, guiando as almas daqueles que estão perdidos para onde deveriam ir - Ele ergue a mão abrangendo todos os fantasmas vagando ali - Cada alma desencaminhada é uma falha na equação da vida e da morte em nosso mundo... Quando ofereço-te o Manto do Ceifador, ofereço uma vida solitária... Uma vida fora do acampamento onde vive, sem os amigos que cultivou, sem a familia que conheceu. É um trabalho solitário, mas... Importante.

O deus termina e aguarda ainda olhando o guri.

-- Longe de tudo?

Por um momento parei para refletir, quantos amigos eu havia feito nesses anos de acampamento júpiter e meio-sangue? Meu amigo, a resposta é zero. Eu estava praticamente mofando, sendo escalado para uma ou outra missão sem muita importância durante todo esse tempo. Me tornar um ceifador iria...dar um sentido a tudo.

-- Aceito, mas eu consigo voltar a andar? -- Aponto o ferimento que eu mesmo havia causado.

O deus dá um sorriso torto. Ele gira sua foice acima dos dois e o lugar parece ficar mais escuro. Cris sente algo ardendo dentro dele. O frio volta a envolver o garoto, mas agora não de uma forma ruim... Não o fazia tremer. Ele se sentia que ele próprio se tornava frio. As dores desapareceram aos poucos. Tânatos apoiou a mão sobre seu ombro e o ajudou a ficar de pé. O manto sobre ele ficou mais escuro, mais semelhante ao do deus, e o garoto sentiu as forças retornando a seu corpo. Talvez, ainda mais força.

- Pois então, erga-se como um Ceifador para uma nova vida, criança... Aos poucos terás contato com seu novo mundo e seu novo ofício... Não demanda pressa. Por enquanto... Talvez deseje terminar o trabalho que tinhas aqui. Ou talvez não... As almas não demoram a debandar, sem o Pote.

O deus desaparece. O tempo volta a fluir. O esqueleto para sua espada a centímetros do garoto... Por fim ele abaixa a mão e começa a afundar no chão.

A árvore lá na frente urra com sua boca e cipós começam a implodir do chão. O garoto sente um peso em sua mão e quando abaixa a cabeça, vê nela uma foice.

Minhas energias estavam de volta, ao me colocar de pé com a ajuda do deus senti como se nunca havia sido atingido anteriormente. Apertei o cabo de minha nova arma com força e um sorriso maldoso surgiu em meu rosto.

— Sim, acho que vou terminar.

Oculto com o manto que havia recebido de Thânatos, avancei voando toda a distância que me separava da árvore, desviando dos cipós e passando minha foice pelos fantasmas pelo caminho, apenas por curiosidade. Por instinto, cortei meu antebraço levemente com a foice, a sujando de sangue. Avancei na árvore e cortei o enorme olho com a foice nova, amaldiçoada por meu sangue. Me afastei rapidamente, o mais que podia.

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